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Sobre o Paraíso

O Paraíso
por São João Bosco

Se muito nos apavora o pensamento e a consideração do inferno, igualmente nos consola a lembrança do Paraíso, preparado por Deus para todos os que o amam e o servem durante essa vida. Para que você possa fazer dele uma idéia, contemple uma noite serena. Como é belo ver o céu com aquele agrupamento e variedade de estrelas! Umas menores, outras maiores: enquanto umas despontam no horizonte, outras estão prestes a desaparecer; todas, porém, ordenadas segundo a vontade do seu Criador. Acrescente a isso a visão de um belo dia, de tal forma que o esplendor do sol não ofusque a claridade das estrelas e da lua. Suponha, além disso, ter à mão tudo o quede belo se pode encontrar no mar, na terra, nos povoados, nas cidades, nos castelos dos reis e dos monarcas do mundo inteiro. Junte a isso as bebidas mais delicadas, os alimentos mais saborosos, a música mais doce, a harmonia mais suave. Pois bem: tudo isso junto não é nada em comparação da excelência dos bens e dos gozos do Paraíso. Oh! Como merece ser desejado e ardentemente amado aquele lugar onde se goza de todos os bens! O bem-aventurado não poderá deixar de exclamar: “Quanto a mim, com justiça eu verei tua face; ao despertar, eu me saciarei com tua imagem”(Sl 17, 15).

Considere, além disso, o gozo que inundará a sua alma ao entrar no Paraíso. O encontro, o acolhimento dos parentes e dos amigos; a nobreza, a beleza dos Querubins, dos Serafins, de todos os Anjos e de todos os Santos, que aos milhões e milhões louvam o Criador; o coro dos Apóstolos, a multidão imensa dos Mártires, dos Confessores, das Virgens. Há também um exército enorme de jovens que por terem conservado a virtude da pureza, cantam a Deus um hino que ninguém mais pode entoar. Oh! Como são felizes neste reino os bem-aventurados! Sempre mergulhados na alegria, sem nenhuma doença, sem desgostos e preocupações que perturbem a sua paz e o seu gozo!

Medite, além disso, meu filho, que todos os bens até aqui enumerados são um nada em comparação do grande prazer que se experimenta da visão de Deus. Ele alegra os bem-aventurados com o seu olhar amável e derrama nos corações um mar de delícias. Da mesma forma que o sol ilumina e embeleza o mundo inteiro, assim Deus, com a sua presença, ilumina todo o Paraíso e enche os seus afortunados habitantes de gozos inefáveis. Nele você verá como em um espelho, todas as coisas, gozará de todos os prazeres lícitos da mente e do coração. São Pedro, no Monte Tabor, por ter visto uma só vez o rosto de Jesus radiante de luz, ficou repleto de tanta doçura que exclamou fora de si: “Senhor, é bom estarmos aqui” (Mt 17, 4). Que prazer não será, pois contemplar, não por um instante, mas para sempre, para sempre gozar desse rosto divino que fascina os Anjos e os Santos e que alegra todo o Paraíso! E a beleza e afabilidade de Maria, de que prazer deve também encher o coração do bem-aventurado! “Quão amáveis são tuas moradas, Senhor dos Exércitos!” (Sl 84, 2). Por isso os coros dos Anjos e dos bem-aventurados cantam a sua glória dizendo: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos exércitos” (Is 6,3). A ele seja dada “honra e glória pelos séculos dos séculos” (1Tm 1, 17).

Coragem, pois, meu filho; neste mundo você terá que sofrer, mas não importa: o prêmio que receberá na Eternidade compensará infinitamente todos os sofrimentos. Que consolação não será a sua, quando encontrar no Céu na companhia dos parentes, dos amigos, dos Santos, dos bem-aventurados e exclamar:
“Estaremos para sempre com o Senhor” (1Ts 4, 17). Então será a hora que abençoará o momento em que abandonou o pecado, que fez aquela boa Confissão e sempre buscou os Sacramentos; lembrará do dia em que deixou os maus companheiros e se entregou a uma vida virtuosa. E cheio de gratidão volverá para Deus e cantará seus louvores e sua glória por todos os séculos. Assim seja.

Sobre o Inferno

Coletânea de textos para meditação.

1º Texto – Extraído de O cristão bem formado, por São João Bosco

O inferno é destinado pela justiça divina para punir com suplícios eternos os que morrem em pecado mortal. A primeira pena que os condenados sofrem no inferno é a pena dos sentidos, são atormentados por um fogo que queima horrivelmente, sem nunca diminuir de intensidade. Cada sentido sofre a própria pena; os olhos sofrem pela fumaça e pelas trevas e são aterrados pela vista dos demônios e dos outros condenados. Os ouvidos, dia e noite, só escutam contínuos uivos, prantos e blasfêmias. O olfato sofre enormemente pelo mau cheiro daquele enxofre e pez ardente que o sufoca. A boca é atormentada por sede deoradora e fome canina. Eles voltam pela tarde, latindo como um cão e rondam pela cidade (Sl 59, 7).

O pecador rico no meio daqueles tormentos ergueu o olhar ao Céu e pediu uma pequena gota de água para mitigar a secura de sua língua e até isso lhe foi negado. Por isso, aqueles infelizes, sedentos, devorados pelas chamas, atormentados pelo fogo, choram, gritam e se desesperam. Oh! Inferno, inferno! Como são infelizes os que caem nos teus abismos! E você que diz, meu filho? Se agora você não pode conservar um dedo sobre a pequena chama de uma vela, se não consegue aguentar nem uma fagulha de fogo na mão sem gritar, como poderá aguentar então entre aquelas chamas por toda a eternidade?

Considere, além disso, meu filho, o remorso que experimenta a consciência dos condenados. Eles padecerão um inferno na memória, na inteligência, na vontade. Recordarão continuamente o motivo da sua perdição. Esta lembrança é o verme que nunca morre. Onde o verme não morre e onde o fogo não se extingue (Mc 9, 48).

Recordarão o tempo que Deus lhes concedeu para evitar a perdição, os bons exemplos dos companheiros, os propósitos feitos e não cumpridos. Pensarão nos sermões ouvidos, nos avisos do confessor, nas boas inspirações para deixar o pecado; vendo que já não há remédio, lançarão gritos desesperados. A vontade nada terá do que deseja e ao contrário padecerá todos os males. A inteligência conhecerá finalmente o grande bem que perdeu.

A alma separada do corpo, ao se apresentar no tribunal divino, vislumbra a beleza de Deus, conhece toda a sua bondade, chega quase a contemplar por um instante o esplendor do Paraíso, ouve talvez também os cantos harmoniosos dos Anjos e dos Santos. Que dor perceber que perdeu tudo isso para sempre! Quem poderá resistir a tais tormentos?

Meu filho, você que agora não se importa em perder Deus e o Paraíso, conhecerá a sua cegueira quando vir tantos companheiros, mais ignorantes e mais pobres do que você, triunfarem e gozarem no reino dos Céus, ao passo que você será lançado para longe daquela pátria feliz, do gozo do mesmo Deus, da companhia da Santíssima Virgem e dos Santos. Então, faça penitência, não espere quando não houver mais tempo: entregue-se a Deus. Quem sabe se não é este o último chamado e se não corresponde, quem sabe se Deus não o abandona e não o deixa cair naqueles eternos suplícios!

Oh! Meu Jesus, livrai-me do inferno.

2º Texto – Extraído do Tratado da oração e da meditação, por São Pedro de Alcântara

Neste dia meditarás nas penas do inferno, para que com esta meditação também mais se confirme tua alma no temor de Deus e aborrecimento do pecado.

Estas penas (diz São Boaventura) devem-se imaginar debaixo de algumas figuras e semelhanças corporais que os santos nos ensinaram. Pelo que será coisa conveniente imaginar o lugar do inferno (segundo o mesmo diz) como um lago escuro e tenebroso, posto debaixo da terra, ou como um poço profundíssimo cheio de fogo, ou como uma cidade espantosa e tenebrosa, que toda arde em vivas chamas, na qual não soa outra coisa senão vozes e gemidos de atormentadores e atormentados, com perpétuo pranto e ranger de dentes.

Pois neste mal-aventurado lugar se padecem duas penas principais: uma a que chama de sentido e a outra de dano. E quanto à primeira, pensa como não haverá ali sentido algum dentro nem fora da alma que não esteja penando com seu próprio tormento, porque assim como os maus ofenderam a Deus com todos os seus membros e sentidos e a todos fizeram armas para servir ao pecado, assim ordenará Ele que cada um deles pene com seu próprio tormento e pague seu merecido. Ali os olhos adúlteros e desonestos padecerão com a visão horrível dos demônios. Ali os ouvidos que se deram a ouvir mentiras e palavras torpes ouvirão perpétuas blasfêmias e gemidos. Ali os narizes amadores de perfumes e odores sensuais serão cheios de intolerável fétido. Ali o gosto que se regalava com diversos manjares e guloseimas será atormentado com raivosa fome e sede. Ali a língua murmuradora e blasfema será amargada com fel de dragões. Ali o tato amador de regalos e branduras andará nadando naquelas geleiras (que diz Jó) do Rio Cocito e entre os adores e chamas do fogo. Ali a imaginação padecerá com a apreensão das dores presentes; a memória com a recordação dos prazeres passados; o entendimento com a representação dos males futuros e a vontade com grandíssimas iras e raivas que os maus terão contra Deus. Finalmente, ali se acharão em um todos os males e tormentos que se podem pensar, porque (como diz São Gregório), ali haverá frio que não se possa sofrer, fogo que não se possa apagar, verme imortal, fétido intolerável, trevas palpáveis, açoites de atormentadores, visão de demônios, confusão de pecados e desesperação de todos os bens. Pois dize-me agora: se o menor de todos estes males que há cá, que se padecesse por mui pequeno espaço de tempo, seria tão duro de aturar, que será padecer ali num mesmo tempo toda esta multidão de males em todos os membros e sentidos interiores e exteriores e isto não por espaço de uma noite só, nem de mil, porém de uma eternidade infinta? Que sentidos? Que palavras? Que juízo há no mundo capaz de sentir ou encarecer isto como é?

Pois não é esta a maior das penas que ali se passam: outra há, sem comparação, maior, que é a que os teólogos chamam pena de dano, a qual é ter de carecer para sempre da visão de Deus e de sua gloriosa companhia, porque tanto é maior uma pena quanto de maior bem priva o homem, e, pois, que Deus é o maior bem dos bens, assim carecer dele será o maior mal dos males, qual de verdade é este.

Estas são as penas que geralmente competem a todos os condenados. Mas além destas penas gerais há outras particulares que ali padecerá cada um conforme a qualidade do seu delito. Porque uma será a pena do soberbo, e outra a do invejoso, e outra a do avarento, e outra a do luxurioso, e assim os demais. Ali se regulará a dor conforme o deleite recebido, e a confusão conforme a presunção e soberba, e a desnudez conforme a demasia e abundância e a fome e sede conforme o regalo e a fartura passada.

A todas essas penas sucede a eternidade do padecer, que é como que o selo e a chave de todas elas, porque tudo isto ainda seria tolerável se fosse finito, porque nenhuma coisa é grande se tem fim. Pena, porém, que não tem fim, nem alívio, nem declínio, nem admiração, nem há esperança de que se acabará algum dia, nem a pena, nem o que a dá, nem o que a padece, senão que é como um desterro preciso e como um sambenito irremissível, que nunca jamais se tira; isto é coisa para tirar o juízo a quem atentamente a considera.

Esta é, pois, a maior das penas que naquele mal-aventurado lugar se padecem: porque, se estas penas houvessem de durar por algum tempo limitado, ainda que fossem mil anos, ou cem mil anos, ou, como diz um doutor, se esperasse que se haviam de acabar em se esgotando toda a água do mar Oceano, tirando cada mil anos uma só gota do mar, ainda isto lhes seria alguma espécie de consolo. Mas isto não é assim, senão que suas penas competem com a eternidade de Deus, e a duração da sua miséria com a duração da divina glória; enquanto Deus viver eles morrerão e, quando Deus deixar de ser o que é, eles deixarão de ser o que são; pois nesta duração, nesta eternidade quereria eu, irmão meu, que fincasses os olhos da consideração e que (como animal limpo) ruminasses agora este passo dentro de ti, pois clama no seu Evangelho aquela eterna verdade, dizendo: O céu e a terra passarão; porém minhas palavras não passarão (Mt 24, 25).

 

Livro III – Capítulo XXX

1. Agora é conveniente tratar do quinto gênero de bens nos quais pode a alma gozar-se: os bens sobrenaturais. Por eles entendemos as graças e dons concedidos pelo Senhor, superiores à habilidade e poder natural, chamados gratis datae, dons gratuitos. Tais são os dons de sabedoria e ciência conferidos a Salomão, e também as graças enumeradas por S. Paulo: “A fé, a graça de curar as doenças, o dom dos milagres, o espírito de profecia, o discernimento dos espíritos, a interpretação das palavras, enfim, o dom de falar diversas línguas (1Cor 12,9-10).

2. Sem dúvida, todos esses bens são espirituais, como os do sexto gênero, do qual nos ocuparemos mais tarde; todavia, existe entre eles diferença notável, motivo para distingui-las uns dos outros. O exercício dos bens sobrenaturais tem por fim imediato a utilidade do próximo e é para esse proveito e fim que Deus os concede, conforme diz S. Paulo: “E a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito dos demais” (lb. 5,7). Isto se aplica a essas graças. Os bens espirituais, porém, têm por objetivo somente as relações recíprocas entre Deus e a alma, pela união do entendimento e da vontade, conforme explicaremos mais adiante. Assim, pois, há diferença entre o objeto de uns e outros; os bens espirituais visam só o Criador e a alma, enquanto os sobrenaturais se aplicam às criaturas; diferem também quanto à substância e, por conseguinte, quanto à operação, sendo, portanto, necessário estabelecer certa divisão na doutrina.

3. Falemos agora das graças e dos dons sobrenaturais, no sentido aqui dado. Para purificar a vã complacência que a alma neles pode achar, vem a propósito assinalar dois proveitos desse gênero de bens; um temporal e outro espiritual. O primeiro é curar doentes, dar a vista a cegos, ressuscitar mortos, expulsar demônios, anunciar o futuro aos homens, e outros semelhantes benefícios. O segundo é eterno, e consiste em tornar Deus mais conhecido e servido, seja por quem opera esses prodígios, seja pelos que deles são objetos ou testemunhas.

4. Quanto ao proveito temporal pode-se dizer que as obras sobrenaturais e os milagres pouca ou nenhuma complacência merecem da alma; porque, excluído o proveito espiritual, pouca ou nenhuma importância têm para o homem, pois em si mesmos não são meio para unir a alma com Deus, como é somente a caridade. Com efeito, essas obras e maravilhas sobrenaturais não dependem da graça santificante e da caridade naqueles que as exercitam; seja Deus as conceda verdadeiramente, apesar da maldade humana, como fez ao ímpio Balaão e a Salomão, seja quando exercidos falsamente pelos homens, com a ajuda do demônio, como sucedia a Simão Mago; ou ainda pelas forças ocultas da natureza. Ora, se entre tais graças extraordinárias algumas houvesse de proveito para quem as pratica, evidentemente seriam as verdadeiras, concedidas por Deus. E estas, – excluindo o seu proveito espiritual, – claramente ensina S. Paulo o seu valor dizendo: “Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos, e não tiver caridade, sou como o metal que soa, ou como o sino que tine. E se eu tiver o dom da profecia, e conhecer todos as mistérios e quanto se pode saber; e se tiver toda a fé, até ao ponto de transportar montes, e não tiver caridade nada sou” (1Cor 13,1-2). Muitas almas que receberam esses dons extraordinários e neles puseram sua estima, pedirão ao Senhor, no último dia, a recompensa que julgam ter merecido por eles, dizendo: Senhor, não profetizamos em teu nome, e em teu nome obramos muitos prodígios? E a resposta será: “Apartai-vos de mim, os que obrais a iniqüidade” (Mt 7,22-23).

5. Portanto, jamais deve o homem comprazer-se em possuir tais dons a não ser pelo lucro espiritual que deles pode tirar, isto é, em servir a Deus com caridade verdadeira, pois aí está o fruto da vida eterna. Por essa razão nosso Salvador repreendeu seus discípulos quando mostravam muita alegria por terem expulsado os demônios: “Entretanto, não vos alegreis de que os espíritos se vos submetam; mas alegrai-vos de que os vossos nomes estejam escritos no céu” (Lc 10,20). O que, em boa teologia, significa: gozai-vos somente de que estejam vossos nomes escritos no livro da vida. Seja esta a conclusão: a única coisa na qual pode o homem comprazer-se é a de estar no caminho da vida eterna fazendo todas as suas obras em caridade. Tudo, pois, que não é amor de Deus, que proveito traz e que valor tem diante dele? E o amor não é perfeito quando não é bastante forte e discreto em purificar a alma no gozo de todas as coisas, concentrando-o unicamente no cumprimento da vontade de Deus; Deste modo se une a vontade humana com a divina por meio destes bens sobrenaturais.

Livro III – Capítulo XXXI

Dos prejuízos causados à alma quando põe
o gozo da vontade neste gênero de bens

1. A meu parecer, três são os danos principais em que a alma pode cair colocando seu gozo nos bens sobrenaturais: enganar e ser enganada, sofrer detrimento na fé e deixar-se levar pela vanglória ou alguma vaidade.

2. Quanto ao primeiro dano, é muito fácil enganar os outros e a si mesmo quando há complacência nas obras sobrenaturais. Eis a razão: para distinguir quais sejam as falsas das verdadeiras, e saber como e a que tempo se devem exercitar, é necessário grande discernimento e abundante luz de Deus: ora, o gozo, e a estimação de tais obras impede muito estas duas coisas. Isto acontece por dois motivos: porque o prazer embota e obscurece o juízo; e porque o homem, movido pelo desejo de gozar, não somente cobiça aqueles bens com muita sofreguidão, mas ainda se expõe a agir fora de tempo. Mesmo no caso de serem verdadeiras as virtudes e as obras, bastam os defeitos assinalados para produzir muitos enganos, quer por não serem elas entendidas no seu sentido real, quer por não se realizarem nem trazerem proveito às almas no tempo e modo mais oportuno. É verdade que Deus, distribuidor dessas graças sobrenaturais, as concede juntamente com a luz e o impulso para obrá-las na ocasião e maneira mais conveniente; todavia, o homem ainda pode errar muito, devido à imperfeição e ao espírito de propriedade que nelas tem, não as usando com a perfeição exigida pelo Senhor e conforme a vontade de Deus. A história de Balaão confirma o que dizemos; quando este falso profeta se determinou, contra as ordens de Deus, – a ir maldizer o povo de Israel, o Senhor, indignado, o queria matar (Nm 22,22-23). Também S. Tiago e S. João, levados por um zelo indiscreto, queriam que caísse fogo do céu (Lc 9,54) sobre os samaritanos, pelo fato de recusarem a hospitalidade a nosso Salvador; mas foram logo repreendidos por ele.

3. Daí se vê claramente como estes espíritos de que vamos falando determinam-se a fazer tais obras fora do tempo conveniente, movidos por secreta paixão de imperfeição, envolta em gozo e estima delas. Quando não há semelhante imperfeição, as almas esperam o impulso divino para realizar essas obras, e só as fazem segundo o modo e o momento requerido pelo Senhor; pois, até então, não convém agir. Deus, por isso, queixava-se de certos profetas, por Jeremias, dizendo: “Eu não enviava estes profetas e eles corriam, não lhes falava nada e eles profetizavam” (Jr 23,21). Acrescentando: “Enganaram ao meu povo com a sua mentira e com os seus milagres, não os havendo eu enviado, nem dado ordem alguma” (Jr 23,32). Em outro trecho diz ainda que eles tinham visões apropriadas à tendência do seu espírito e que eram essas precisamente as que divulgavam (Ib. 26). Esses abusos não se dariam se os tais profetas não tivessem misturado o abominável afeto de propriedade a estas obras sobrenaturais.

4. Pelas citações feitas, podemos reconhecer que o dano deste gozo leva o homem a usar de modo iníquo e perverso dessas graças divinas, como Balaão e os que faziam milagres para enganar o povo; e, além disso, induz à temeridade de usar delas sem as haver recebido de Deus. Deste número foram os que profetizavam e publicavam as visões da sua fantasia, ou aquelas que tinham por autor o demônio. Este, com efeito, explora imediatamente a disposição desses homens afeiçoados aos favores extraordinários; fornece-lhes abundante matéria neste vasto campo exercendo as suas malignas influências sobre todas as suas ações; e eles assim enfunam as velas para vogar livremente com desaforada ousadia nestas prodigiosas obras.

5. O mal não pára aí: o gozo e a cobiça desses bens levam essas pessoas a tais excessos que, se antes tinham feito pacto oculto com o demônio (porque muitos fazem coisas extraordinárias por esse meio), chegam ao atrevimento de se entregar então a ele por pacto expresso e manifesto, tornando-se seus discípulos e aliados. Daí saem os feiticeiros, encantadores, mágicos, adivinhos e bruxos. Para cúmulo do mal, esta paixão de gozo nos prodígios extraordinários leva a ponto de se querer comprar a peso de dinheiro as graças e os dons de Deus, a modo de Simão Mago, para fazê-las servir ao demônio. Esses homens procuram ainda apoderar-se das coisas sagradas, e, – não se pode dizê-la sem tremer! – ousam tomar até os divinos mistérios, como já tem sucedido, sacrilegamente usurpando o adorável corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo para uso de suas próprias maldades e abominações. Digne-se Deus mostrar e estender até eles a sua infinita misericórdia.

6. Cada um de nós bem pode compreender quão perniciosas para si mesmas e quão prejudiciais à cristandade são estas pessoas. Observemos de passagem que todos aqueles magos e adivinhos do povo de Israel, aos quais Saul mandou exterminar, caíram em tantas abominações e enganos porque quiseram imitar os verdadeiros profetas de Deus.

7. O cristão, pois, dotado de alguma graça sobrenatural, deve acautelar-se de pôr aí o seu gozo e estimação, não buscando obrar por esse meio; porque Deus que lha concedeu sobrenaturalmente para utilidade da sua Igreja, ou dos seus membros, movê-lo-á também sobrenaturalmente quando e como lhe convier. O Senhor que mandava aos seus discípulos não se preocupassem do que nem como haviam de falar, quando se tratasse de coisa sobrenatural da fé, quer também que nestas obras sobrenaturais o homem espere a moção interior de Deus para agir, pois na virtude do Espírito Santo é que se opera toda virtude. Embora os discípulos houvessem recebido de modo infuso as graças e os dons celestes, conforme se lê nos Atos dos Apóstolos, ainda assim fizeram oração a Deus rogando-lhe que fosse servido de estender sua mão para obrar por meio deles prodígios e curas de doentes, a fim de introduzir nos corações a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo (At 4,29-30).

8. O segundo dano que pode provir do primeiro é detrimento a respeito da fé, de duas maneiras. A primeira, quanto ao próximo; como, por exemplo, se uma pessoa se dispõe a fazer milagres ou maravilhas fora de tempo ou sem necessidade, não somente tenta a Deus, o que é grave pecado, como ainda poderá fazer com que o efeito não corresponda à sua expectativa. Os corações, desde logo, serão expostos a cair no descrédito ou no desprezo da fé. Porque embora o milagre se realize, e Deus assim o permita por motivos só dele conhecidos, como fez com a pitonisa de Saul (1Sm 28,12) (se é verdade que foi Samuel que ali apareceu), nem sempre acontecerá assim. E quando acontecer realizar-se o prodígio, não deixam de errar os que o fazem, e de terem culpa, pois usam dessas graças quando não é conveniente. A segunda maneira é que o homem pode sentir em si mesmo detrimento em relação ao mérito da fé. A estima exagerada dos milagres, cujo poder lhe foi dado, desvia-o muito do hábito substancial da fé que por si mesma é hábito obscuro; e assim, onde abundam os prodígios e os fatos sobrenaturais, há menos merecimento em crer. A esse propósito, diz-nos S. Gregório: “A fé é sem mérito quando a razão humana e a experiência lhe servem de provas”. Por este motivo, Deus só opera tais maravilhas quando são absolutamente necessárias para crer. A fim de que os seus discípulos não perdessem o mérito da fé quando tivessem experiência da sua ressurreição, Nosso Senhor, antes de se lhes mostrar, fez várias coisas, para induzi-los a crer sem o verem. A Maria Madalena primeiramente mostrou vazio o sepulcro e depois lhe fez ouvir dos anjos a notícia desse mistério; porque a fé vem pelo ouvido, como diz S. Paulo, e assim esta santa deveria acreditar antes ouvindo do que vendo. Mesmo quando o viu, foi sob o aspecto de um homem comum. Nosso Senhor quis desse modo acabar de instruí-la na fé que lhe faltava por causa de sua presença sensível. Aos seus discípulos, primeiramente, enviou as santas mulheres a dar-lhes a nova da ressurreição, e eles depois foram olhar o sepulcro. Aos dois que iam a Emaús (Lc 24,15) juntou-se no caminho dissimuladamente; e inflamava-lhes os corações na fé, antes de se manifestar aos seus olhos. Enfim, repreendeu a todos os seus apóstolos reunidos, por não acreditarem na palavra dos que lhes tinham anunciado a sua ressurreição; E a São Tomé, porque quis ter experiência tocando nas suas chagas, censurou o Senhor quando lhe disse: “Bem-aventurados os que não viram, e creram” (Jo 20,29).

9. Vemos, portanto, que não é condição de Deus fazer milagres, antes, ele os faz quando não pode agir de outro modo. Foi por isso que censurou aos fariseus: “Vós, se não vedes milagres e prodígios, não credes” (lb. 4,48). As almas cuja afeição se emprega nessas obras sobrenaturais sofrem grande prejuízo quanto à fé.

10. O terceiro dano é cair ordinariamente a alma na vanglória ou em alguma vaidade, quando quer gozar em tais obras extraordinárias. O próprio prazer por essas maravilhas já é vaidade, não sendo proporcionado puramente em Deus e para Deus. Eis por que Nosso Senhor repreendeu seus discípulos quando manifestaram alegria por terem subjugado os demônios (Lc 10,20); jamais lhes dirigiria esta reprimenda, se não fosse vão tal gozo.

CAPÍTULO XXXII

Dos proveitos resultantes da abnegação do gozo nas graças sobrenaturais.

1. A alma, além das vantagens encontradas livrando-o se dos três danos assinalados, adquire, pela privação de gozo nas graças sobrenaturais, dois proveitos muito preciosos. O primeiro é glorificar e exaltar a Deus; o segundo, exaltar-se a si mesmo. Efetivamente, de dois modos é Deus exaltado na alma. Primeiramente, desviando o coração e a afeição da vontade de tudo o que não é Deus, para fixá-los unicamente nele. “Chegar-se-á o homem ao cimo do coração, e Deus será exaltado” (Sl 63,7). O sentido destas palavras de Davi já foi referido no começo do tratado sobre a noite da vontade. Quando o coração paira acima de todas as coisas, a alma se eleva acima de todas elas.

2. Quando a alma concentra todo o seu gozo só em Deus, muito glorifica e engrandece ao Senhor que então lhe manifesta sua excelência e grandeza; porque nesta elevação de gozo, a alma recebe de Deus o testemunho de quem ele é. Isso, porém, não acontece sem a vontade estar vazia e pura quanto às alegrias e às consolações a respeito de todas as coisas, como o Senhor ainda o ensina por Davi: “Cessai, e vede que eu sou Deus” (Sl 45,11). E outra vez diz: “Em terra deserta, e sem caminho, e sem água; nela me apresentei, a ti como no santuário para ver o teu poder e a tua glória” (Sl 42,3). Se é verdade que Deus é glorificado pela completa renúncia à satisfação de todas as coisas, muito mais exaltado será no desprendimento dessas outras coisas mais prodigiosas, quando a alma põe somente nele o seu gozo; porque são graças de maior entidade, sendo sobrenaturais; e deixá-las para estabelecer unicamente em Deus sua alegria será atribuir a ele maior glória e maior excelência do que a elas. Quanto mais nobres e preciosas são as coisas desprezadas por outro objeto, mais se mostra estima e rende-se homenagem a este último.

3. Além disto, no desapego da vontade nas obras sobrenaturais, consiste o segundo modo de exaltar a Deus. Pois, quanto mais Deus é crido e servido sem testemunhos e sinais, tanto mais é exaltado pela alma; porque ela crê de Deus mais do que os sinais e os milagres lhe poderiam dar a entender.

4. O segundo proveito, como dissemos, faz a alma exaltar-se a si mesma. Afastando a vontade de todos os testemunhos e de todos os sinais aparentes, eleva-se em fé muito mais pura, a qual Deus lhe infunde e aumenta com maior intensidade. Ao mesmo tempo, o Senhor faz crescer na alma as duas outras virtudes teologais, a esperança e a caridade. A alma goza, então, de sublimes e divinas notícias, por meio deste hábito obscuro da fé em total desapego. Experimenta grande deleite de amor pela caridade que lhe faz gozar unicamente de Deus vivo; e mediante a esperança permanece satisfeita quanto à memória. Tudo isto constitui admirável proveito, essencial e diretamente necessário à perfeita união da alma com Deus.

(São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo, Livro III. cap. XXX – XXXII)

Doutrina sobre imagens

CAPÍTULO XXXV

Dos bens espirituais agradáveis que podem ser objeto
claro e distinto da vontade. De quantas espécies são.

1. Podemos reduzir a quatro gêneros todos os bens nos quais a vontade pode distintamente comprazer-se: os que nos movem à devoção, os que nos incitam a servir a Deus, os que nos dirigem a ele e os que nos levam à perfeição. Trataremos de cada um segundo esta ordem, começando pelos primeiros, a saber: as imagens e retratos dos santos, os oratórias e cerimônias.

2. Pode haver, quanto a essas imagens e quadros, muita vaidade e gozo inútil. Sendo tão importantes para o culto divino e tão necessários para mover a vontade à devoção como o demonstra o uso e aprovação da Santa Igreja, – e, portanto, convém nos aproveitarmos desse meio para despertar nossa tibieza, – todavia, muitas pessoas põem muito mais o gozo na pintura e ornato exterior do que no seu significado.

3. A Santa Igreja ordenou o uso das imagens para dois fins principais: reverenciar nelas os santos, e mover a vontade despertando a devoção dos fiéis, por meio delas, para com os mesmos santos. Quando esses dois efeitos se produzem, as imagens são muito proveitosas, e o seu uso necessário. E, assim, devem ser preferidas aquelas que retratam os santos mais ao vivo e ao natural, movendo a maior devoção; só este motivo justifica a preferência, e não o preço e curiosidade do feitio ou ornato exterior. Há quem repare mais na arte e valor da imagem, do que no santo nela representado. Em vez de dirigirem a sua devoção espiritual e interior ao mesmo santo invisível, põem-na no ornato e confecção material daquela imagem que deveriam esquecer, pois é apenas motivo para a alma se afervorar; e aplicam ao objeto exterior o amor e gozo da vontade com deleite e satisfação do sentido. Com este modo de agir, impedem totalmente o verdadeiro espírito que requer o aniquilamento do afeto em todas as coisas particulares.

4. Ver-se-á bem o que afirmamos, no uso detestável adotado em nossos tempos por certas pessoas que, não tendo ainda aborrecido o traje vão do mundo, adornam as imagens segundo os costumes modernos inventados cada dia pelos mundanos para seus passatempos e vaidades; e com este traje frívolo e repreensível vestem as ditas imagens. Isto aos santos sempre foi e é sumamente odioso. Parece que tais pessoas, por sugestão diabólica, querem canonizar as suas próprias vaidades, ornando com estas as sagradas imagens, não sem grave injúria aos mesmos santos. Desse modo, a honesta e séria devoção da alma, que lança e arroja de si até a sombra de qualquer vaidade, é substituída por uma espécie de ornato de bonecas; e alguns chegam a servir-se das imagens como se fossem ídolos em que põem toda a sua complacência. Vereis ainda outras pessoas que não se fartam de acrescentar imagens a imagens, e querem que sejam de tal ou qual feitio e espécie, colocadas de determinada maneira, para deleitarem ao sentido, enquanto a devoção do coração é bem diminuta. Têm tanto apego à essas Imagens, como Micas ou Labão aos seus ídolos: o primeiro saiu de casa bradando em altas vozes porque lhos roubavam, e o segundo, após ter percorrido longo caminho para os recuperar, muito encolerizado, revolveu toda a tenda de Jacó para encontrá-los (Jz 18,24; Gn 31,34).

5. A pessoa verdadeiramente devota faz do invisível o objeto principal de sua devoção; não necessita de muitas imagens, antes usa de poucas escolhendo as mais ajustadas ao divino que ao humano; procura conformar as imagens e a si mesma ao estado e condição da outra vida, e não segundo o traje e modo deste século. Têm em vista, não somente livrar o apetite de ser movido pela figura deste mundo, mas ainda não dar ocasião a que essas imagens lhe tragam a lembrança dele como aconteceria se oferecessem aos olhos alguma coisa semelhante às do século. Longe de apegar o coração às que usa, bem pouco se aflige se lhas tiram, porque busca dentro de si mesma a viva imagem de Cristo crucificado, e nele se goza por tudo lhe ser tirado e tudo lhe faltar. Até quando lhe subtraem os motivos e meios mais próprios para a sua união com Deus, fica sossegada. Efetivamente, é maior perfeição conservar-se a alma com tranqüilidade e satisfação interior na privação de todos esses meios, do que possuí-los com apego e apetite. Embora seja bom recorrer às imagens que ajudam à devoção, escolhendo por este motivo as que mais movem a alma, todavia, não é perfeito apegar-se a elas com propriedade, a ponto de entristecer-se quando lhas tiram.

6. Tenha por certo a alma o seguinte: quanto mais estiver presa a qualquer imagem ou motivo sensível, menos subirá a sua oração e devoção até Deus. Sem dúvida, podem ser preferidas algumas imagens a outras, por retratarem mais expressamente os santos, excitando assim maior devoção; mas, unicamente por esta causa, é permitido afeiçoar-se a elas, sem aquele apego e propriedade a que nos referimos. De outro modo, todo o proveito e fruto que havia de tirar o espírito em elevar-se a Deus por esses motivos de devoção, absorvê-lo-ia o sentido, estando engolfado no gozo desses mesmos instrumentos; e aquilo que me deveria ajudar a alma, por minha imperfeição me serve de obstáculo, tanto como o apego e afeição desordenada a qualquer outra coisa.

7. Sobre este ponto das imagens, talvez alguma objeção me seja feita, por quem não haja compreendido bastante a desnudez e pobreza de espírito requerida para a perfeição. Mas nada se pode opor, certamente, ao reconhecer a imperfeição muito comum insinuada na escolha dos rosários. É raro encontrar pessoa que não tenha alguma fraqueza a esse respeito, desejando que sejam de tal forma e não de outra, de cor determinada, preferindo um metal a outro, com tal ou tal ornamento etc. No entanto, Deus não ouve mais favoravelmente as orações feitas com este ou aquele, pois a matéria do objeto não tem importância alguma. As orações ouvidas por Deus são de preferência as que saem de um coração simples e verdadeiro, cuja única pretensão é agradar ao Senhor, sem cuidar deste ou daquele rosário, a não ser por causa das indulgências.

8. Tal o modo e condição de nossa vã cobiça, que em tudo quer fazer presa; como bicho roedor, come as partes sãs, e nas coisas boas e más faz o seu ofício. Com efeito, que significa a tua predileção por um rosário curiosamente trabalhado? E por que preferes seja desta matéria e não de outra, senão para assim satisfazer o teu gosto? Por que escolhes esta, imagem de preferência àquela, pelo motivo do seu preço e da sua arte, sem reparar se te inflamará mais no amor divino? Certamente, se empregasses teu apetite e gozo somente em amar a Deus, serias indiferente a isto ou àquilo. Causa grande aborrecimento ver algumas pessoas espirituais tão apegadas ao modo e feitio desses objetos e à curiosidade e vã complacência no uso deles, jamais se satisfazendo; andam sempre a trocar uns por outros, mudando e olvidando a devoção do espírito por esses meios visíveis. Muitas vezes a eles se apegam com afeto desordenado, bem semelhante ao que têm a outros objetos temporais; e deste modo de proceder resulta-lhes não pouco dano.

CAPÍTULO XXXVI

Continua a falar das imagens. Ignorância de
certas pessoas a este respeito.

1. Muito haveria que escrever sobre a pouca inteligência de muitas pessoas a propósito das imagens. Às vezes, chega a tanto a sua inépcia, que confiam mais numa imagem do que em outra, na persuasão de serem mais ouvidas por Deus por aquela do que por esta, embora ambas representem a mesma realidade, como, por exemplo, duas de Jesus Cristo ou duas de Nossa Senhora. Isto acontece porque põem a sua afeição na figura exterior, preferindo uma à outra, mostrando assim grande ignorância no modo de tratar com Deus e de prestar-lhe a devida honra e culto, o qual só olha a fé e pureza do coração daquele que ora. Se Deus concede mais graças por meio de determinada imagem do que por outra do mesmo gênero, não é porque haja na primeira algo especial para esse efeito (embora haja diferença no exterior); mas somente porque as pessoas se sentem movidas a mais devoção por meio daquela. Se tivessem a mesma devoção para com ambas as imagens (e ainda sem esses meios), receberiam os mesmos favores divinos.

2. A diferença das formas ou a beleza material da imagem não são motivo para Deus fazer milagres e mercês; serve-se o Senhor daquelas diferenças, não para as imagens serem estimadas com preferência de umas e outras, mas unicamente para despertar nas almas a devoção adormecida, e o afeto dos fiéis à oração. Ora, como por meio daquela imagem este resultado é produzido, isto é, se acende a devoção nas almas, movendo-as a mais oração (porque uma e outra são meios para Deus atender o que lhe é pedido), então costuma o Senhor conceder suas graças por aquela determinada imagem, operando milagres. Não procede Deus assim por causa da imagem, em si mesma apenas uma pintura, mas por causa da devoção e fé que as almas têm para com o santo representado. Se tivesses, pois, a mesma devoção e fé em Nossa Senhora, diante de uma como de outra imagem (pois ambas representam a mesma Senhora), receberias as mesmas graças, e ainda sem imagem alguma. Vemos por experiência como Deus faz os seus prodígios e graças por intermédio de certas imagens cuja escultura ou pintura deixa muito a desejar, não oferecendo interesse algum à curiosidade; assim o faz para impedir os fiéis de atribuírem qualquer coisa nesses prodígios à escultura ou à pintura da imagem.

3. Muitas vezes Nosso Senhor escolhe as imagens colocadas nos lugares solitários e apartados para conceder suas mercês. De um lado, porque a devoção dos fiéis aumenta com o sacrifício de se transportarem até onde elas estão, e torna mais meritório o seu ato; de outro, porque se afastam do barulho e do tumulto da multidão para orar, como fazia o divino Mestre. Por isto, quem faz alguma peregrinação, é bom fazê-la quando não vão outros peregrinos, embora seja em tempo extraordinário. Quando há grande concurso de gente, jamais aconselharia que se fizesse, pois ordinariamente se volta mais distraído do que quando se foi. Muitos fazem essas romarias mais por recreação do que por devoção. Havendo piedade e fé, qualquer imagem produz efeitos bons nas almas; mas, fora disso, nenhuma imagem trará proveito. Bem viva imagem era nosso Salvador em sua vida mortal; e, todavia, não aproveitava àqueles que não tinham fé, por mais que estivessem em sua divina companhia e presenciassem as suas obras maravilhosas. Era esta falta de fé a causa de não serem operados muitos milagres pelo mesmo Senhor em sua terra, como diz o Evangelista (Lc 4,23-24).

4. Quero declarar também aqui alguns efeitos sobrenaturais produzidos pelas imagens em certas pessoas. Deus às vezes infunde nessas imagens virtude particular, de modo a ficar impressa com muita força na mente aquela figura, e, ao mesmo tempo, a devoção causada na alma, como se estivesse sempre presente; e assim, cada vez que a pessoa se lembra da imagem, sente despertar a mesma devoção, experimentada a primeira vez que a viu, e esse efeito se produz com maior ou menor intensidade. Sucederá que em outra imagem, embora mais primorosa, não achará a mesma pessoa aquele espírito.

5. Muitas almas também sentem maior devoção diante de algumas imagens do que de outras, e não será esse efeito sobrenatural; tratar-se-á apenas de gosto ou afeição da natureza. Assim como entre as pessoas, pode haver simpatia e inclinação para uma que talvez seja menos formosa, e que, entretanto, contentará mais a alguém, ocupando-lhe a imaginação e prendendo-lhe o afeto, porque lhe agrada aquela forma e figura, do mesmo modo acontece com as imagens. Julgarão aquelas almas ser devoção o sentimento de afeto nascido de tal ou qual imagem, e não será talvez mais que afeição e gosto natural. Outras vezes, olhando uma imagem, parece-lhes vê-la mover-se ou fazer sinais e se lhes manifestar por qualquer modo, ou lhe falar. Tudo isto, bem como os efeitos sobrenaturais a que já nos referimos, pode vir da parte de Deus, produzindo bons e verdadeiros frutos, seja para aumentar a devoção, seja para proporcionar à alma alguma ajuda a que se possa apoiar em sua própria fraqueza, evitando as distrações; mas muitas vezes são astúcias do demônio, com a fim de prejudicar e iludir as almas. Portanto, daremos doutrina sobre esta matéria no capítulo seguinte.

CAPÍTULO XXXVII

Como se deve dirigir para Deus o gozo encontrado pela
vontade nas imagens, de modo a não constituírem
estas motivos de erro ou obstáculo.

1. Assim como as imagens são de grande proveito trazendo-nos a lembrança de Deus e dos seus santos, movendo a nossa vontade à devoção quando as usamos de forma conveniente, assim também podem ser fonte de inúmeros erros quando a alma não sabe dirigir-se por elas a Deus nos efeitos sobrenaturais que produzem. Um dos principais meios empregados pelo demônio para surpreender as almas incautas e afastá-las do verdadeiro caminho da vida espiritual é precisamente este de coisas sobrenaturais e extraordinárias que manifesta nas imagens, tanto nas corporais e materiais aprovadas pela Igreja, como nas representações interiores que costuma imprimir na imaginação, sob a aparência de tal ou tal santo ou da sua imagem. Transfigura-se assim o demônio em anjo de luz, dissimulando-se sob os mesmos meios que nos são dados para ajuda e remédio de nossas fraquezas, para deste modo surpreender a nossa inexperiência. Uma alma boa deve ter maior cuidado e receio naquilo que lhe parece bem, pois o mal traz consigo o próprio testemunho de si.

2. Estes são os danos encontradiços nesta matéria: ser impedida no seu vôo para Deus, servir-se das imagens de modo grosseiro e ignorante, ser enganada natural ou sobrenaturalmente por meio delas. Para evitá-las, e também para purificar o gozo da vontade no uso das imagens, dirigindo-se por elas a Deus conforme a intenção da Igreja, só uma advertência basta à alma: já que as imagens nos servem de motivo para o invisível, é necessário que a afeição e o gozo da vontade se encaminhem exclusivamente à realidade por essas imagens representadas. Portanto, tenha o fiel este cuidado: vendo a imagem, não queira embeber o sentido naquela figura, seja corporal ou imaginária, bem lavrada ou ricamente ornada; quer lhe inspire devoção sensível, ou espiritual, quer lhe manifeste sinais extraordinários. Não faça caso desses· acidentes, nem se detenha na imagem; mas eleve o espírito para o invisível que ela representa, aplicando o sabor e gozo da vontade em Deus com oração e devoção interior a ele, ou ao santo que é ali invocado. Não deixe o sentido ficar presa à pintura, impedindo o espírito de voar à realidade viva. Desta maneira, a alma não será enganada, porque não se prenderá ao que lhe disser a imagem; elevar-se-á, pelo contrário, acima do sentido, e pelo espírito, com grande liberdade, até Deus; e também não terá mais confiança numa imagem do que em outra. Quando encontrar em alguma delas sobrenaturalmente maior devoção, elevando-se logo com o afeto para Deus, receberá mais copiosas graças. Na verdade, quando o Senhor concede essas e outras semelhantes mercês, inclina o gozo e a afeição da vontade para o invisível, e assim quer sempre que o façamos, em total renúncia da força e sabor de nossas potências em relação a todo o visível e sensível.

CAPÍTULO XXXVIII

Continua a explicar os bens que movem a alma à
devoção: oratórios e lugares consagrados à oração.

1. Parece-me ter já demonstrado quanta imperfeição pode ter o espiritual quando se detém nos acessórios das imagens, e como a imperfeição é talvez mais perigosa; porque sob o pretexto de serem coisas santas, as almas se acreditam em segurança, refreando menos o atrativo natural de propriedade. Enganam-se assim freqüentemente, no gosto experimentado no uso desses objetos piedosos, imaginando-se cheios de devoção; quando, porventura, apenas se trata de tendência e apetite natural, que se aplica a esses objetos como se poderia aplicar a outros.

2. Comecemos a falar dos oratórios. Certas pessoas acrescentam imagens sobre imagens no seu oratório, comprazendo-se na ordem e ornamentação com que dispõem tudo, para ficar o mesmo oratório bem adornado e atraente. Quanto a Deus, não pensam em reverenciá-lo mais, e pelo contrário, cuidam menos disso, porque empregam todo gozo e complacência naquelas pinturas e ornatos, desviando-o da realidade invisível como dissemos. Sem dúvida, todo ornamento e decoração, e toda reverência para com as imagens é sempre pouca; por isso, aqueles que as tratam com pouco respeito e veneração são dignos de censura, bem como os pintores e escultores que as fazem tão grosseiras e imperfeitas, que antes tiram a devoção do que a aumentam. Por este motivo deveriam vedar a fabricação de imagens aos que nesta arte não são peritos. Não obstante, que relação existe entre o culto oferecido às imagens e o espírito de propriedade, apego e apetite nesses ornamentos e atavios exteriores que de tal maneira cativam o teu sentido a ponto de impedirem tanto o teu coração de unir-se a Deus, e amá-lo esquecendo tudo por seu amor? Se faltares a este dever por causa daqueles objetos sensíveis, não somente o Senhor deixará de agradecer tudo quanto fazes, mas dar-te-á o castigo merecido, por não teres buscado em tudo seu divino beneplácito, de preferência ao teu gosto. A festa da entrada triunfal de Nosso Senhor em Jerusalém (Mt 21) apóia o que afirmamos. Enquanto o povo o recebia com palmas e cantos, Sua Majestade chorava. A causa de suas lágrimas era ver os corações tão afastados dele acreditando pagar a dívida de reconhecimento, por aqueles sinais e manifestações exteriores. Mais faziam festa a si mesmos do que a Deus. Assim acontece a muitos em nossos dias quando há alguma solenidade em qualquer lugar: costumam alegrar-se muito nos festejos e folguedos, gostando de ver e de serem vistos, ou comprazendo-se em comer ou ainda buscando outros motivos humanos, bem longe de procurarem o agradável a Deus. Nessas tendências e intenções tão baixas nenhum gosto dão ao Senhor, sobretudo, se os promotores de tais festas misturam coisas profanas e ridículas, próprias para excitar o riso e a distração dos assistentes, ou procurando atrair a atenção do povo em vez de despertar a devoção nas almas.

3. E que dizer de outras intenções de algumas pessoas nessas festas, ou quando as celebram por interesse de lucro? Estes têm o olho da cobiça mais aberto sobre o próprio ganho que sobre o serviço do Senhor. Não ignoram a insensatez da sua conduta, e Deus, que os vê, ainda melhor o sabe. Saibam que se não têm reta intenção, fazem mais festa a si do que a Deus. Tudo quanto é feito para a própria satisfação, ou para agradar aos homens, Deus não aceita como feito a si. Antes sucede muitas vezes estarem os homens folgando de tomar parte nas festas religiosas, e Deus estará se irritando contra eles, como aconteceu aos filhos de Israel cantando e dançando em torno do seu ídolo (Ex 32,7-28), imaginando honrar a Deus, quando muitos milhares dentre eles foram exterminadas pelo Senhor. Ou ainda poderá suceder como aos sacerdotes Nadab e Abiú, filhos de Aarão, que foram mortos com os turíbulos nas mãos porque ofereciam fogo estranho (Lv 10,1-2). De igual modo, o que penetrou na sala do festim sem estar revestido da túnica nupcial foi, por ordem do rei, lançado, de pés e mãos atados, nas trevas exteriores (Mt 22,12). Mostram-nas esses diversos castigos até que ponto desagradam a Deus as irreverências cometidas nas reuniões feitas em sua honra. Ó Senhor, meu Deus, quantas festas vos fazem os filhos dos homens, nas quais o demônio tem a sua parte maior do que a vossa! O inimigo se alegra nessas festas porque, aí, como tratante faz a sua féria. Quantas vezes, Senhor, podereis vós dizer nessas acasiões: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15,8), isto é, o seu culto é destituído de fundamento. Deus deve ser servido unicamente pelo que ele é, sem que se interponham outros fins: não o servir, pois, por esse motivo, é não o reconhecer como causa final de nosso culto.

4. Voltando a falar dos oratórios: há pessoas que procuram ornamentá-los mais para satisfazer a próprio gosto, que para honrar a Deus. Outras fazem tão pouco caso da devoção desses lugares como se fossem salões mundanos; e ainda outras pessoas os estimam tão pouco, a ponto de terem mais gosto nas coisas humanas do que nas divinas.

5. Mas, deixando isto de parte, dirijamo-nos aos que fiam mais fino, como se costuma dizer; queremos falar daqueles que se têm em conta de gente devota. Essas pessoas se preocupam de tal modo em contentar as próprias inclinações naturais para decorar seus oratórios, que nisso gastam todo o tempo que deveriam dar a Deus pela oração e recolhimento interior. Não compreendem que nesta desordem, sem recolhimento e paz para a alma, encontram tanta distração como nos outros cuidados temporais; a cada passo se inquietam nos seus apetites, mormente se alguém tentasse tirar-lhes aquele gozo.

CAPÍTULO XXXIX

Como se deve usar dos oratórios e igrejas,
encaminhando o espírito para Deus.

1. Para dirigir a Deus o espírito nesse gênero de bens que movem à devoção, convém advertir que é permitido e mesmo útil aos principiantes algum prazer e gasta sensível nas imagens, oratórias e outros objetos visíveis de piedade. Como não perderam ainda o gosto das coisas temporais, e não estando ainda a sua alma mortificada, este gosto sensível nos motivos de devoção lhes é indispensável para afastá-las dos prazeres terrestres. Assim acontece à criança a quem se apresenta um objeto antes de retirar o que ela tem na mão a fim de distraí-la e impedir que chore vendo-se com as mãos vazias. Para progredir, porém, na perfeição, é preciso desprender-se até dos gostos e apetites em que a vontade pode comprazer-se; porque a puro espírito não se prende a objeto algum, estabelecendo-se unicamente no recolhimento e trato íntimo com Deus. Se faz uso de imagens e oratórios, é de modo passageiro, e logo se eleva a Deus, esquecendo tudo o que é sensível.

2. É bom escolher para a oração os lugares mais aptos para tal exercício; contudo, deve-se escolher de preferência aqueles que menos embaraçam os sentidos e o espírito para a união com Deus. Pode-se aplicar, a esse respeito, a palavra de Nosso Senhor à samaritana, quando esta lhe perguntou qual era o lugar mais adequado para a oração, se o templo ou o monte. Jesus respondeu que a qualidade da verdadeira oração não estava dependendo de um ou de outro lugar, mas que o Pai se agradava daqueles que o adoravam em espírito e em verdade. Podemos concluir dessas palavras que, embora as igrejas e os oratórios se destinem, sem dúvida, exclusivamente à prece e sejam apropriados para a oração, todavia, para o íntimo trato da alma com Deus, deve ser dada a preferência aos lugares que menos possam ocupar e prender o sentido. Não existe razão para certas pessoas escolherem sítios agradáveis e amenos; em vez de recolherem o espírito em Deus, antes o detêm em recreação e gosto sensível. Um lugar solitário e mesmo agreste facilita mais a oração, pois o espírito, não sendo retido e limitado pelas realidades visíveis, sobe em vôo seguro e direto para Deus. Enfim, se os lugares exteriores algumas vezes ajudam o espírito a se elevar, é sempre sob a condição de serem logo olvidados quando a alma se une a Deus. Nosso Salvador, para nos dar exemplo, escolhia habitualmente para orar os lugares solitários, não favorecendo muito os sentidos, mas antes levantando o espírito ao céu, tais como as montanhas que se levantam da terra e ordinariamente são destituídas de vegetação, não oferecendo recreação sensível.

3. Desse modo, o verdadeiro espiritual não cuida senão em procurar o recolhimento interior, sem se prender a tal ou tal lugar, nem a esta ou àquela comodidade, porque isso seria estar atado ao sentido; busca, porém, esquecer tudo escolhendo para isto o lugar mais desprovido de objetos e encantos sensíveis, para poder gozar de seu Deus, na solidão de toda criatura. É notável ver algumas pessoas espirituais unicamente preocupadas em compor os seus oratórios e dispor os lugares de oração, segundo os próprios gostos e inclinações. Não se preocupam com o recolhimento interior; que é o mais importante; bem pouco espírito possuem, pois, se o possuíssem, não poderiam achar gosto nesses modos e maneiras; antes, achariam cansaço.

CAPÍTULO XL

Prossegue, encaminhando o espírito ao
recolhimento interior nas coisas já ditas.

1. Existem almas que nunca chegam a entrar nas verdadeiras alegrias do espírito, porque jamais suprimem definitivamente o apetite do gozo imoderado dos objetos exteriores e sensíveis. Observem bem essas almas que, se as igrejas e os oratórios materiais são lugares consagrados especialmente à oração, e se a imagem é o objeto que reaviva o fervor, isto não quer dizer que se deva empregar todo o gosto e sabor nesses meios visíveis, esquecendo de orar no templo vivo, isto é, no recolhimento interior. Para chamar nossa atenção para este ponto, o Apóstolo S. Paulo disse: “Não sabeis vós que sois templo de Deus, e que o espírito de Deus mora em vós?” (1Cor 3,16). A esta consideração nos convida a palavra, já citada, de Nosso Senhor à samaritana: “Aos verdadeiros adoradores, em espírito e verdade, é que convém adorar” (Jo 4,24). Muito pouco caso faz Deus de teus oratórios e lugares de oração bem dispostos e acomodados, se por empregares neles teu gozo e apetite tens menos desnudez interior que a pobreza de espírito na renúncia a tudo que podes possuir.

2. Se queres purificar a vontade do apetite e gozo e vã complacência nos objetos exteriores elevando-a livremente para Deus na oração, deves ter o cuidado de conservar a consciência pura e de guardar toda a tua vontade para Deus e a tua mente verdadeiramente fixa nele. E, como disse, é preciso escolheres o lugar mais afastado e solitário que puderes encontrar, aplicando então todo o gozo da vontade em invocar e glorificar a Deus. Quanto a essas pequenas satisfações exteriores, não faças caso delas, procurando antes negá-las. A alma, acostumada a saborear a devoção sensível, jamais conseguirá chegar à força do deleite espiritual achado na desnudez do espírito mediante o recolhimento interior.

CAPÍTULO XLI

De alguns danos em que caem as almas entregues
ao gozo sensível dos objetos e lugares de devoção.

1. A procura das doçuras sensíveis causa ao espiritual muitos prejuízos, interiores e exteriores. Com efeito, quanto ao espírito, jamais chegará ao recolhimento interior, que consiste em privar-se e esquecer-se de todos os gozos sensíveis, entrando no profundo centro de si mesmo, para aí adquirir com eficácia as virtudes. Quanto ao exterior, o homem encontra o inconveniente de não se acomodar em todos os lugares para orar, não se dispondo a fazê-lo senão naqueles que lhe causam gosto. E assim, muitas vezes, faltará à oração, pois, como se diz vulgarmente, só sabe ler na cartilha da sua aldeia.

2. Além disso, esta tendência natural torna-se causa de grande inconstância, porque a alma é incapaz de permanecer muito tempo no mesmo lugar e de perseverar no mesmo estado. Vê-la-eis hoje aqui, e amanhã ali; ora se retira numa ermida, ora em outra; orna um dia um oratório, e no seguinte ornará outro. Pomos nesse número as pessoas inconstantes que passam a existência mudando de estado e de maneira de viver. Como não se sustêm nos exercícios espirituais senão pelo fervor e gozo sensível, jamais fazem sérios esforços para recolher-se no seu interior pela abnegação da vontade e pela paciência em suportar as menores contrariedades. Apenas descobrem um sítio favorável à sua devoção, ou um gênero de vida adaptado ao seu gosto e ao seu humor, logo o buscam, abandonando o que anteriormente ocupavam. Mas como foram impelidas por aquele gosto sensível, depressa procuram outra coisa, porque a sensibilidade é por sua natureza inconstante e variável.

CAPÍTULO XLII

Três espécies de lugares devotos. Como a
vontade deve proceder a respeito deles.

1. Encontro três espécies de lugares próprios para mover a vontade à devoção. A primeira se acha em certos sítios, certas disposições de terreno que, pela agradável variedade dos seus aspectos, despertam naturalmente a devoção, pondo sob os nossos olhos vales ou montanhas, árvores ou uma pacífica solidão. Esses meios são vantajosos, desde que a vontade imediatamente se transporte para Deus, esquecendo-os; pois, como se sabe, para alcançar o fim não se deve usar do meio mais do que é suficiente. Se alguém procura, com efeito, recrear o apetite e satisfazer os sentidos, experimentará antes secura e distração para o espírito; porque somente o recolhimento interior é capaz de produzir gozo e fruto espiritual.

2. Portanto, chegadas a esses lugares, as pessoas, devem esquecê-las, procurando permanecer unidas a Deus no interior. Se ficam presas ao sabor e gosto do sítio, mudando daqui para ali, mais buscam recreação sensitiva e instabilidade de ânimo, do que sossego espiritual. Sabemos como os anacoretas e outros santos eremitas, nos vastíssimos e ameníssimos desertos, escolheram o menor lugar suficiente para habitarem, edificando estreitíssimas celas e covas onde, se encerravam. Em uma dessas S. Bento viveu três anos. Um outro solitário, que foi S. Simão, atou-se com uma corda a fim de não transpor os limites fixados por esse laço voluntário; e, assim, grande número, de outros, cuja enumeração seria demasiado longa. Esses santos estavam persuadidos de que, se não extinguissem a cobiça e o apetite de achar gosto e sabor espiritual, jamais chegariam a ser espirituais.

3. A segunda espécie é mais particular: são alguns lugares onde Deus se digna conceder a certas pessoas favores espirituais excelentes e muito saborosos. Seja no meio dos desertos ou fora deles, pouco importa. As almas favorecidas por essas graças inclinam-se instintivamente para o lugar onde as receberam, sentindo, muitas vezes, grandes desejos de aí voltar. Todavia, isso não significa que tornem a encontrar as mesmas graças, já uma vez recebidas, pois não dependem de sua própria vontade. Deus concede esses favores quando, como e onde lhe apraz, sem prender-se a lugar, ou tempo, nem ao arbítrio daquele a quem os concede. Se o coração estiver despojado de todo apego, poderá ser-lhe útil ir orar algumas vezes nesses lugares, e isto por três razões. Primeiramente, ainda que Deus não se prenda a um lugar particular, para conceder suas graças, parece desejar receber nesse mesmo lugar os louvores da alma, tendo-lhe ali outorgado os favores. A segunda razão é sentir a alma maior necessidade de testemunhar o seu reconhecimento pelos benefícios recebidos quando se encontra naquele sítio. A terceira razão consiste em despertar-se mais a devoção com a lembrança do que ali recebeu.

4. Por essas razões, o desejo de rever esses lugares é sempre louvável; mas, ainda uma vez, não se deve imaginar que Deus esteja obrigado, por um primeiro benefício, a renovar os seus dons sempre no mesmo lugar, sem poder fazê-lo em outros; aliás, a própria alma é centro mais conveniente e mais apto para as graças de Deus do que qualquer lugar exterior. Lemos na Sagrada Escritura que Abraão erigiu um altar no próprio sítio onde Deus lhe aparecera, e invocou ali seu santo nome. Mais tarde, na sua volta do Egito, o Patriarca se deteve no mesmo local para oferecer as suas preces sobre o altar já edificado (Gn 12,8; 13,4). Também Jacó marcou o lugar onde o Senhor a ele se mostrara, no alto da escada misteriosa, colocando uma pedra ungida com óleo. (Ib. 28,13-18). Agar, em sinal de veneração, deu nome ao lugar ande o anjo lhe aparecera, e com grande estimação por esse mesmo lugar disse: “Eu vi aqui as castas daquele que me vê a mim” (Gn 16,13).

5. A terceira espécie refere-se a alguns lugares particulares que o Senhor designou para ali ser invocado e servido. Tais foram o Monte Sinai onde Deus deu a lei a Moisés (Ex 24,12); a montanha indicada a Abraão para imolar o seu filho (Gn 22,2); e também o Monte Horeb onde Deus quis manifestar-se a nosso Pai Elias (1Rs 19,9).

6. A causa por que Deus escolhe estes lugares, de preferência a outras, para aí ser louvado, só ele a conhece. Quanto a nós, é suficiente saber que tudo está ordenado para nosso proveito e para serem ouvidas as nossas preces feitas em qualquer lugar, com sincera fé. No entanto, os santuários especialmente dedicados a seu divino serviço oferecem mais segurança às nossas orações, tendo sido consagradas pela Igreja a esse fim.

CAPÍTULO XLIII

De outros meios de que muitas pessoas se servem para orar
e que consistem em grande variedade de cerimônias.

1. Os gozos inúteis e a propriedade de imperfeição que muitas pessoas têm nas coisas de devoção já mencionadas são ainda um pouco toleráveis, por não haver malícia no seu modo de agir. Mas é insuportável a apego manifestado por algumas almas a respeito de certas maneiras de cerimônias introduzidas por pessoas pouco ilustradas e destituídas de simplicidade na fé. Deixemos agora de lado as práticas que consistem na uso de palavras estranhas ou expressões sem significação, bem como outras coisas profanas que pessoas supersticiosas, de consciência grosseira e suspeita, ordinariamente entremeiam em suas orações. Tudo isto é evidentemente mau e pecaminoso porque, nessas cerimônias, algumas vezes existe pacto oculto com o demônio, provocando a ira de Deus, e não a sua misericórdia; não preciso, portanto, falar aqui sobre isso.

2. Limito-me a tratar de certas cerimônias que, não sendo manifestamente suspeitas, são adotadas em nossos dias por muita gente, com devoção indiscreta. Essas pessoas prestam tanta importância e crédito às minuciosidades que acompanham as suas preces e todos os seus exercícios espirituais, que se o mínimo lhes falta ou sai dos limites daqueles modos e maneiras, logo imaginam tudo perdido, parecendo-lhes que Deus não ouvirá suas orações. A sua confiança, em vez de se apoiar na realidade viva da prece, baseia-se nas cerimônias supérfluas, não sem grande desacato e agravo ao Senhor. Querem, por exemplo, a missa celebrada com certo número de velas, nem mais nem menos; oferecida por este ou aquele sacerdote, em determinado dia, a tal ou tal hora, nem antes nem depois. Tratando-se de outro ato religioso, deve-se executá-lo em época precisa, juntar-lhe tal número de orações, realizá-las de certo modo, com cerimônias determinadas, nada podendo ser mudado. Ainda é necessário que a pessoa indicada para esse mister goze de certas prerrogativas ou determinadas qualidades; se, por acaso, vem a faltar uma única circunstância no que está previamente marcado, nada se faz.

3. Mas o pior e intolerável é a pretensão dessas pessoas, querendo sentir os efeitos das orações feitas com aquelas cerimônias, ou desejando saber se alcançarão os fins nelas colimados. Proceder deste modo não é menos do que tentar a Deus e injuriá-lo gravemente; e o Senhor, sendo tão ofendido, permite algumas vezes ao demônio enganar essas almas, por meio de sentimentos a apreensões muito alheias ao proveito espiritual. Elas bem merecem que assim lhes suceda, por causa da propriedade e apego às suas orações, desejando que se faça a sua própria vontade, de preferência ao beneplácito divino. E assim, porque não querem pôr toda a sua confiança em Deus, jamais tirarão proveito com as suas cerimônias.

CAPÍTULO XLIV

Como se deve dirigir para Deus o gozo e a
fortaleza da vontade nesses exercícios de devoção.

1. Quanto mais as almas confiam nessas vãs cerimônias, tanto menos confiança põem em Deus, e não alcançarão dele o que desejam. Há alguns que oram mais pelas suas pretensões pessoais do que para honrar a Deus; e, embora persuadidos de estar a realização de suas petições sempre subordinada à vontade divina, o espírito de propriedade e o gozo vão que os animam levam-nos a multiplicar as preces para obter o efeito dos pedidos. Fariam melhor dando outro fim às suas súplicas, ocupando-se em coisas mais importantes como em purificar deveras a consciência, e ocupar-se, de fato, no negócio de sua salvação eterna. Todas as outras diligências, fora destas, devem ser relegadas a segundo plano. Obtendo de Deus o que é mais essencial, obtém-se igualmente todo o resto, desde que seja para o maior bem da alma, mais depressa e de modo muito melhor do que se fosse empregada toda a força para alcançar essas graças. Assim prometeu o Senhor dizendo pelo Evangelista: “Buscai, pois, primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas se vos acrescentarão” (Mt 6,33).

2. Esta é aos olhos divinos a prece mais perfeita; e para satisfazer as petições íntimas do coração, não há melhor meio do que pôr a força de nossas orações naquilo que mais agrada a Deus. Então, não somente o Senhor nos dará que lhe pedimos, isto é, as graças necessárias à nossa salvação, mas ainda nos concederá os bens que julgar mais convenientes e melhores às nossas almas, ainda mesmo quando não lhos peçamos. Davi no-lo faz compreender em um salmo: “Perto está o Senhor de todos os que o invocam; de todos os que o invocam em verdade” (Sl 144,18). Ora, os que o invocam em verdade são precisamente esses que pedem os dons mais elevados ou, em outras palavras, as graças da salvação. Referindo-se a estas, a mesma Davi acrescenta: “Ele cumprirá a vontade dos que o temem, e atenderá à sua oração, e salvá-los-á. O Senhor guardará a todos os que o amam” (Sl 144,19-20). Esta expressão – Perto está o Senhor – significa a sua disposição em ouvir as súplicas e satisfazer naquilo mesmo que nem pensaram em pedir. Lemos a respeito de Salomão, que tendo solicitado uma graça muito do agrado do Senhor, isto é, a sabedoria para governar seu povo seguindo as leis da eqüidade, ouviu esta resposta: “Pois que a sabedoria agradou mais ao teu coração, e não me pediste riquezas, nem bens, nem glória, nem a morte dos teus inimigos, e nem ainda muitos dias de vida, pois me pediste sabedoria e ciência, para poderes governar a meu povo, sobre o qual eu te constituí rei, a sabedoria e a ciência te são dadas e, além disso, dar-te-ei riquezas e bens e glória, de modo que nenhum rei, nem antes de ti, nem depois de ti, te seja semelhante” (2Cr 1,11-12). Deus, fiel à sua promessa, fez com que os inimigos de Salomão lhe pagassem tributo, e todos os povos vizinhas vivessem em paz com ele. Semelhante fato lemos no Gênesis: Abraão pedira a Deus para multiplicar a posteridade de Isaac, seu legítimo filho. Essa prece foi ouvida pelo Senhor, que prometeu realizá-la, dando a Isaac uma geração tão numerosa quanto as estrelas do firmamento. E acrescentou: “E quanto ao filho da tua escrava, eu o farei também pai de um grande povo, por ser teu sangue” (Gn 21,13).

3. Deste modo, pois, as almas devem dirigir para Deus as forças e o gozo da vontade nas suas orações, não se apoiando em invenções de cerimônias que a Igreja católica desaprova e das quais não usa. Deixem o sacerdote celebrar a santa missa do modo e maneira conveniente, segundo a liturgia determinada pela Igreja. Não queiram usar de novidades, como se tivessem mais luz do que o Espírito Santo e a sua Igreja. Se não são atendidas por Deus numa forma simples de oração, creiam que muito menos as ouvirá o Senhor por meio de todas as suas múltiplas invenções. De tal modo é a condição de Deus, que, se a sabem levar bem e a seu modo, alcançarão dele quanto quiserem; mas se as almas o invocam por interesse, de nada adianta falar-lhe.

4. Quanto às outras cerimônias de várias orações e devoções ou práticas de piedade, não se deve aplicar a vontade em modos e ritos diferentes das ensinadas por Cristo. Quando os discípulos suplicaram ao Senhor que lhes ensinasse a rezar, ele que tão perfeitamente conhecia a vontade do Pai eterno sem a menor dúvida, lhes indicou todo o necessário para o mesmo Pai nos ouvir. Para isto contentou-se em ensinar-lhes as sete petições do Pater Noster, onde estão incluídas todas as nossas necessidades espirituais e temporais. Não acrescentou a essa instrução outras fórmulas ou cerimônias; longe disso, em outra circunstância, ensinou-lhes o seguinte: “Quando orassem, não fizessem questão de muitas palavras, porque o Pai celeste bem sabia tudo quanto convinha a seus filhos” (Mt 6,7-8). Só lhes recomendou, com insistência, que perseverassem na oração, isto é, nessa mesma oração do Pater Noster. E noutra passagem, diz: “É precisa orar sempre, e não cessar de o fazer” (Lc 18,1). Mas não ensinou grande variedade de petições, senão que repetissem muitas vezes com fervor e cuidada aquelas da oração dominical que encerram tudo o que é a vontade de Deus, e conseqüentemente tudo o que nos convém. Quando, no horto de Getsêmani, Nosso Senhor recorreu por três vezes ao Pai eterno, repetiu de cada vez as mesmas palavras, como referem os evangelistas: “Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não se faça nisto a minha vontade, mas sim a tua” (Mt 26,39). Quanto às cerimônias que nos ensinou para a oração, são apenas de dois modos: seja no segredo de nosso aposento, onde, afastados do tumulto e de qualquer olhar humano, podemos orar com o coração mais puro e desprendido, conforme aquelas palavras do Evangelho: “Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechada a porta, ora a teu Pai ocultamente” (Mt 6,6), retirando-nos a orar nos desertos solitários, como ele próprio fazia nas horas melhores e mais silenciosas da noite. Desta forma, não será preciso assinalar tempo limitado às nossas orações, nem dias marcados, preferindo uns aos outros, para nossos exercícios devotos; não haverá também razão para usar de modos singulares expressões estranhas, em nossas preces. Sigamos em tudo a orientação da Igreja, conformando-nos ao que ela usa; porque todas as orações se resumem nas mencionadas petições do Pater Noster.

5. Não quero condenar algumas pessoas que escolhem certos dias para as suas devoções, ou para jejuar e fazer outras coisas semelhantes; pelo contrário, antes aprovo essas práticas devotas. Merece repreensão somente o modo e as cerimônias com que as fazem, pondo limites e formalidades nessas devoções. Foi isto que reprovou Judite aos habitantes de Betúlia, quando os censurou por terem fixado a Deus o tempo em que esperavam receber o efeito da sua misericórdia; e assim lhes disse: “E quem sois vós para limitar o tempo da misericórdia de Deus? Não é esse o meio de atrair a sua misericórdia, mas, antes, de excitar a sua cólera” (Jt 8,11-12).

CAPÍTULO XLV

Trata do segundo gênero de bens espirituais distintos
em que a vontade pode comprazer-se vãmente.

1. Há uma segunda espécie de bens distintos agradáveis, nos quais a vontade pode achar gozo inútil. São os que provocam ou persuadem a servir o Senhor, e por isso os chamamos provocativos: referimo-nos aos pregadores. Podemos considerá-los sob duplo aspecto; isto é, no que diz respeito aos mesmos pregadores, e no que se relaciona com os ouvintes. A uns e outros há muito que advertir indicando-lhes o modo de orientar para Deus o gozo da vontade nos sermões.

2. Em primeiro lugar, se o pregador quer ser útil ao povo e não se expor ao perigo de vaidosa complacência em si mesmo, é bom lembrar-lhe que a pregação é um exercício mais espiritual que vocal. Sem nenhuma dúvida, a palavra exterior é o meio indispensável; todavia, a sua força e eficácia dependem inteiramente do espírito interior. Por sublime que seja a retórica e a doutrina daquele que prega, por elevado que seja o estilo com o qual apresenta os seus pensamentos, o fruto será proporcional, ordinariamente, ao espírito que o anima. Embora a palavra de Deus seja em si mesma eficaz, e Davi pôde dizer que “o Senhor emite sua voz, voz poderosa” (Sl 67,34), todavia, o fogo também tem a virtude de queimar e, no entanto, não inflama um objeto ao qual falte a disposição necessária.

3. Ora, para assegurar os frutos da doutrina, ou da palavra de Deus, duas disposições são requeridas: uma no pregador e outra no ouvinte. Habitualmente, o resultado do sermão depende da disposição do que prega. Diz-se com razão: tal mestre, tal discípulo. Lemos nos Atos dos Apóstolos que os sete filhos daquele príncipe dos sacerdotes dos judeus tinham o costume de esconjurar os demônios com a mesma fórmula de que se ser-via S. Paulo; um desses malignos espíritos se pôs em furor contra eles e gritou-lhes: “Eu conheço a Jesus, e sei quem é Paulo, mas vós quem sois?” e apoderando-se deles, arrancou-lhes as roupas e os deixou feridos (At 19,15). Assim aconteceu porque esses homens não possuíam as disposições necessárias para semelhante missão, e não porque Cristo proibisse que os demônios fossem expulsos em seu nome. Uma vez, os apóstolos, vendo um homem, que não pertencia ao número dos discípulos, expulsar o demônio em nome de Cristo, quiseram opor-se a ele; logo o Senhor os repreendeu, dizendo: “Não o estorveis, porque não existe ninguém que, tendo em meu nome feito um milagre, possa no mesmo instante se pôr a falar mal de mim” (Me 9,38). Deus tem ojeriza dos que, ensinando a sua lei, não a guardam, e pregando o bem, não o praticam. A esse respeito, S. Paulo exclama: “Tu, pois, que a outro ensinas, não te ensinas a ti mesmo? Tu que pregas que se não deve furtar, furtas?” (Rm 2,21). E o Espírito Santo, pela voz de Davi, diz ao pecador: “Por que falas tu dos meus mandamentos e tomas o meu testamento na tua boca? Posto que tu tens aborrecido a disciplina e postergaste as minhas palavras” (Sl 49,16-17). Faz-nos compreender, por aí, que o Senhor recusará a tais homens o espírito necessário para produzir fruto nas almas.

4. Ordinariamente estamos vendo: quanto mais a vida do pregador é santa e perfeita, mais a sua palavra é fecunda, produzindo maior fruto nos ouvintes, mesmo sendo vulgar o seu estilo, diminuta a sua retórica e comum a sua doutrina, porque do espírito vivo se lhe comunica o calor. E o outro, de vida imperfeita, pouco proveito fará nas almas, não obstante a sublimidade do estilo e a elevação da doutrina. Certamente o bom estilo e modo de pregar, a doutrina elevada, são de natureza a impressionar os ouvintes, produzindo ótimos resultados, quando tudo isto vem acompanhado de bom espírito; mas, sem esse espírito interior, embora possam ter certo gozo, e a inteligência ficar satisfeita, a vontade receberá pouco ou mesmo nada desses sermões. E assim costuma permanecer frouxa e remissa para agir, como estava antes, apesar das mais belas palavras maravilhosamente ditas pelo orador. Não servem essas frases senão para encantar os ouvidos, como um concerto musical ou o som harmonioso dos sinos. Mas o espírito, como digo, não sai dos seus limites mais do que antes, porque não tem a voz do pregador virtude para ressuscitar o morto tirando-o de sua sepultura.

5. Pouco importa ouvir uma música soar melhor que outra, se me não move mais que a primeira a praticar obras. Porque embora tenham dito maravilhas, logo se esquecem, pois não pegarão fogo à vontade. Porque além de não produzirem de si mesmo muito fruto, aquela presa que o sentido faz no gosto da tal doutrina, impede que passe ao espírito, ficando-se só na estima do modo e dos acidentes com que é dita, louvando o pregador nisto e naquilo, e seguindo-o por esse motivo mais do que pela emenda que daí se tira. S. Paulo dá muito bem a entender esta doutrina aos coríntios, dizendo: “Eu, irmãos, quando vim ter convosco, não vim pregando a Cristo, com sublimidade de doutrina e de sabedoria; e as minhas palavras e a minha pregação não eram em retórica de humana sabedoria, mas na manifestação do espírito e da verdade” (1Cor 2,1-4).

6. Porque embora a intenção do Apóstolo e a minha não seja condenar o bom estilo e a retórica e o bom termo, pois muito importam ao pregador, como, aliás, a todos os negócios; porque o bom termo e estilo, até as coisas caídas e estragadas levanta e reedifica, assim como o mau termo às boas estraga e perde…

(São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo, L. III, c. XXXV – XLV)

1. As dúvidas se nos multiplicam entre as mãos, e assim não podemos ir adiante tão depressa quanto desejamos. Porque, pelo mesmo motivo de as suscitarmos, somos necessariamente obrigados a resolvê-las, para dar toda clareza e força à verdade da doutrina. Todavia há sempre vantagem nessas dúvidas: embora nos detenham um pouco os passos, servem para ensinar e elucidar o nosso intento, como veremos pela seguinte objeção.

2. No capítulo anterior dissemos como não é vontade de Deus que as almas queiram receber por via sobrenatural graças extraordinárias de visões, palavras interiores etc. Por outra parte vimos nesse mesmo capítulo e o provamos com testemunhos da Sagrada Escritura, como na antiga lei este modo de tratar com Deus era usado e lícito; e não somente era lícito, mas ainda o próprio Deus o mandava, repreendendo o povo escolhido quando o não fazia. Em Isaías, podemos observar como Deus admoestou os filhos de Israel porque desejavam descer ao Egito sem primeiramente consultar o Senhor: “E não tendes consultado o meu oráculo” (Is 30,2). Também lemos em Josué que, sendo enganados os mesmos filhos de Israel pelos gabaonitas, censurou-os o Espírito Santo nestes termos:

“Tomaram os israelitas dos seus víveres, e não consultaram o oráculo do Senhor” (Js 9,14). Igualmente vemos, na Sagrada Escritura, que Moisés sempre consultava o Senhor, e o mesmo fazia o rei Davi, e todos os outros reis de Israel em suas guerras e necessidades, bem como os sacerdotes e antigos profetas. Deus lhes respondia falando-lhes sem se desgostar. Assim era conveniente e se eles não interrogassem seria mal feito. Qual o motivo, pois, de não ser agora, na nova Lei da graça, como era antigamente?

3. Respondo: se essas perguntas feitas a Deus eram lícitas na antiga Lei, e se convinha aos profetas e sacerdotes desejarem visões e revelações divinas, a causa principal era não estarem bem assentados os fundamentos da fé, nem estabelecida a Lei evangélica. Assim era mister interrogar a Deus e receber as suas respostas, fosse verbalmente, ou por meio de visões ou revelações, fosse em figuras ou símbolos, ou, afinal, por sinais de qualquer outra espécie. Porque todas essas palavras e revelações divinas eram mistérios da nossa fé, referentes ou relacionadas a ela. Ora, não sendo as realidades da fé próprias da criatura humana, mas de Deus, reveladas por sua própria boca, era necessário que os homens fossem conhecê-las em sua mesma fonte. Eis por que o Senhor os repreendia quando não o consultavam; e com as suas respostas os encaminhava, através dos acontecimentos e sucessos, para a fé, por eles ainda desconhecida por não estar ainda fundada. Agora, já estabelecida a fé em Cristo, e a Lei evangélica promulgada na era da graça, não há mais razão para perguntar daquele modo nem aguardar as respostas e os oráculos de Deus, como antigamente. Porque em dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra única (e outra não há), tudo nos falou de uma vez nessa Palavra, e nada mais tem para falar.

4. Este é o sentido do texto em que S. Paulo quer induzir os hebreus a se apartarem daqueles primitivos modos de tratar com Deus conforme a lei de Moisés, e os convida a fixar os olhos unicamente em Cristo, dizendo: “Tudo quanto falou Deus antigamente pelos profetas a nossos pais, de muitas formas e maneiras, agora, por último, em nossos dias, nos falou em seu Filho, tudo de uma vez” (Hb 1,1). O Apóstolo dá-nos a entender que Deus emudeceu por assim dizer, e nada mais tem para falar, pois o que antes falava por partes aos profetas, agora nos revelou inteiramente, dando-nos o Tudo que é seu Filho.

5. Se atualmente, portanto, alguém quisesse interrogar a Deus, pedindo-lhe alguma visão ou revelação, não só cairia numa insensatez, mas agravaria muito a Deus em não pôr os olhos totalmente em Cristo sem querer outra coisa ou novidade alguma. Deus poderia responder-lhe deste modo dizendo: Se eu te falei já todas as coisas em minha Palavra, que é meu Filho, e não tenho outra palavra a revelar ou responder que seja mais do que ele, põe os olhos só nele; porque nele disse e revelei tudo, e nele acharás ainda mais do que pedes e desejas. Porque pedes palavras e revelações parciais; se olhares o meu Filho acharás nele a plenitude; pois ele é toda a minha palavra e resposta, toda a minha visão, e toda a minha revelação. Ao dar-vo-lo como irmão, mestre, companheiro, preço e recompensa, já respondi a todas as perguntas e tudo disse, revelei e manifestei. Quando no Tabor desci com meu espírito sobre ele dizendo: “Este é meu Filho amado em quem pus todas as minhas complacências, ouvi-o” (Mt 17,S), desde então aboli todas as antigas maneiras de ensinamentos e respostas, entregando tudo nas suas mãos. Procurai, portanto, ouvi-lo; porque não tenho mais outra fé para revelar, e nada mais a manifestar. Se antes falava, era para prometer o meu Cristo; se os meus servos me interrogavam, eram as suas perguntas relacionadas com a esperança de Cristo, no qual haviam de achar todo o bem (como o demonstra toda a doutrina dos evangelhos e dos apóstolos). Mas interrogar-me agora e querer receber minhas respostas como no Antigo Testamento, seria de algum modo pedir novamente Cristo e mais fé; tal pedido mostraria, portanto, falta desta mesma fé já dada em Cristo. E assim seria grande agravo a meu amado Filho, pois, além da falta de fé, seria obrigá-lo a encarnar-se novamente, vivendo e morrendo outra vez na terra. Não acharás, de minha parte, o que pedir-me nem desejar, quanto a revelações ou visões; considera-o bem e acharás nele, já feito e concedido tudo isto e muito mais ainda.

6. Queres alguma palavra de consolação? Olha meu Filho, submisso a mim, tão humilhado e aflito por meu amor, e verás quantas palavras te responde. Queres saber algumas coisas ou acontecimentos ocultos? Põe os olhos só em Cristo e acharás mistérios ocultíssimos e tesouros de sabedoria e grandezas divinas nele encerrados, segundo o testemunho do Apóstolo: “Nele estão encerrados os tesouros da sabedoria e da ciência” (CI 2,3). Esses tesouros da sabedoria ser-te-ão muito mais admiráveis, saborosos e úteis que tudo quanto desejarias conhecer. Assim glorificava-se o mesmo Apóstolo quando dizia: Porque julguei não saber coisa alguma entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado (1Cor 2,2). Enfim, se for de teu desejo ter outras visões ou revelações divinas, ou corporais, contempla meu Filho humano e acharás mais do que pensas, conforme disse também S. Paulo: “Porque nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente” (Cl 2,9).

7. Não convém, pois, interrogar a Deus por via sobrenatural, nem é necessário falar-nos desse modo; tendo manifestado toda a fé em Cristo, não há mais fé a revelar nem jamais haverá. Querer receber conhecimentos por via extraordinária é, conforme dissemos, notar falta em Deus, achando não nos ter dado bastante em seu Filho. Mesmo quando se deseja essa via sobrenatural dentro da fé, não deixa de ser curiosidade proveniente de fé diminuta. Assim não havemos de querer nem buscar doutrina ou outra coisa qualquer por meio extraordinário. Quando Jesus expirando na cruz exclamou: “Tudo está consumado,” (Jo 19,30), quis dizer terem-se acabado todos esses meios, e também todas as cerimônias e ritos da Lei antiga. Guiemo-nos, pois, agora pela doutrina de Cristo-homem, de sua Igreja e seus Ministros, e por este caminho, humano e visível, encontraremos remédios para nossas ignorâncias e fraquezas espirituais, pois para todas as necessidades aí se acha abundante remédio. Sair desse caminho não só é curiosidade, mas muita audácia; não havemos de crer, por via sobrenatural, senão unicamente o que nos é ensinado por Cristo, Deus e homem, e seus ministros, homens também. É isto o que nos diz S. Paulo nestas palavras: se algum anjo do céu vos ensinar outra coisa fora do que nós, homens, vos pregamos, seja maldito e excomungado (Gl 1,8).

8. Sendo, portanto, verdade, que sempre havemos de praticar agora o que Cristo nos ensinou, e tudo o mais fora disso é nada, nem se há de crer senão em conformidade com a doutrina evangélica, perde seu tempo quem quer tratar com Deus como na antiga Lei. Além do mais, naquela época, não era permitido a todos interrogar o Senhor, e Deus não respondia sem distinção de pessoas. Dava seus oráculos somente aos pontífices e profetas, homens que tinham a missão de transmitir ao povo a lei e a doutrina. Quem desejasse consultar a Deus, fazia-o por intermédio do profeta e do sacerdote e não por si mesmo. Se Davi interrogou algumas vezes o Senhor, era por ser profeta; ainda assim, nunca o fazia sem as vestes sacerdotais, como se vê no primeiro Livro de Samuel, quando disse ao sacerdote Abimelec: “Traze-me o efod” (lSm 30,7), que era uma das principais vestes dos sacerdotes e com ela consultou ao Senhor. Outras vezes, dirigia-se a Natã ou a outros profetas, para consultar a Deus. Pela palavra dos sacerdotes e dos profetas, não segundo o próprio parecer, cada um se assegurava do que lhe era dito, da parte de Deus.

9. E, assim, os oráculos divinos não tinham força nem autoridade alguma, para que lhes fosse dado inteiro crédito se não estivessem sancionados pelos profetas e pontífices. Deus gosta tanto de ver o homem governado e dirigido por outro homem, seu semelhante, regido e guiado pela razão natural, que quer de modo absoluto não se creia nas comunicações sobrenaturais, nem se confirmem estas com segurança, senão quando hajam passado por este canal humano da boca do homem. Deste modo, quando Deus diz ou revela algo a uma alma, inspira-lhe ao mesmo tempo a inclinação de comunicá-lo a quem convém dizer; e até que isto se faça não costuma ele dar plena satisfação, porque não a tomou o homem de outro que lhe é semelhante. Está escrito no livro dos Juízes que Gedeâo, não obstante ter recebido do Senhor a segurança da vitória, duvidava e temia ainda. Deus o deixou nessa dúvida e pusilanimidade até o momento em que recebeu da boca dos homens a confirmação da promessa divina. Vendo-o tão abatido, disse-lhe o Senhor: “Levanta-te e desce ao campo… e tendo ouvido o que eles falam, então se confortarão as tuas mãos, e descerás com segurança ao campo dos inimigos” (Jz 7, 11). E assim foi. Estando Gedeão no campo, ouviu um madianita contar a outro um sonho que tivera, no qual vira que o mesmo Gedeão os havia de vencer; e, com isto, animou-se a começar a batalha com grande alegria. Por este fato vemos como Deus não quis que Gedeão se assegurasse só por via sobrenatural, mas fosse confirmado naturalmente.

10. Muito mais admirável o exemplo de Moisés. Ordenara-lhe o Senhor, com muitas razões, confirmando sua ordem com os prodígios da vara transformada em serpente e da mão leprosa, que fosse libertar os filhos de Israel. No entanto, Moisés permanecia tão fraco e irresoluto para obedecer que, apesar do descontentamento de Deus, jamais se determinava a ir. Só teve coragem quando o Senhor o animou dizendo: “Eu sei que Aarão, teu irmão, filho de Levi, é eloqüente: vê, ele te sai ao encontro, e vendo-te se alegrará no seu coração. Fala-lhe, e põe as minhas palavras na sua boca; e eu serei na tua boca e na dele para que cada um receba a confirmação da boca do outro” (Ex 4, 14-15).

11.  A estas palavras se conformou Moisés, com a esperança do consolo que do conselho de seu irmão havia de receber. Deste modo procede a alma humilde: não ousa tratar só com Deus nem se contenta e assegura enquanto não se submete ao governo e conselho humano. E Deus assim o quer; quando alguns se juntam a conferir uma verdade, ele está presente no meio deles para esclarecê-la e confirmá-la em seus espíritos, por meio da razão natural, como aconteceu a Moisés e Aarão, aos quais prometeu o Senhor falar pela boca de um e outro, quando agissem conjuntamente. Também diz o mesmo Senhor no Evangelho: Onde se acham dois ou três congregados em meu nome, para examinar o que é mais vantajoso à minha honra e glória, aí estou eu no meio deles (Mt 18, 20), para fazer brilhar em seus corações o esplendor das verdades divinas. Notável é não ter dito que onde estiver um só ali estará ele – mas estará onde estiverem ao menos dois. Com isso nos ensina não ser permitido ao homem julgar sozinho as coisas divinas e nelas se apoiar, sem o conselho e a direção da Igreja e dos seus ministros. Deus não se faz presente àquele que está só; não o esclarece na verdade, nem a confirma no seu interior, deixando-o deste modo tíbio e fraco em ralação à mesma verdade.

12. Exclama o Elesiastes, encarecendo muito este ponto: Ai do que está só, porque quando cair não tem quem o levante. E se dormirem dois juntos, aquecer-se-ão mutuamente (isto é, pelo fogo da caridade que está entre eles); mas um só como se há de aquentar? Isto é, como não será frio nas coisas de Deus? E se alguém mais forte prevalecer contra um deles (isto é, o demônio que prevalece desse modo contra os que querem conduzir-se sós), dois lhe resistirão, a saber, o mestre e o discípulo que se reúnem para conhecer a verdade e praticá-la (Ecl 4, 10-12). O homem isolado geralmente se sente fraco, frio na interpretação da verdade, mesmo quando a recebe da boca de Deus. S. Paulo, depois de haver pregado muito o Evangelho, dizendo tê-lo recebido de Deus e não dos homens, não descansou até ir conferi-lo com S. Pedro e os outros apóstolos. E com este receio, dizia “Por temor de correr ou de haver corrido em vão” (Gl 2, 2). Não se tinha por seguro, enquanto não recebeu a confirmação humana. Coisa digna de ponderação, ó Paulo! Aquele que vos revelou o Evangelho não poderia também revelar-vos a segurança de não errar na pregação de sua verdade?

13. Nisto compreendemos, claramente, como não há certeza nas coisas reveladas por Deus, senão segundo esta ordem aqui explicada. Porque, embora a pessoa que recebe a comunicação divina esteja convicta, como estava S. Paulo a respeito do Evangelho que começara a pregar, pode errar no conhecimento da revelação e a seu respeito. Porque o Senhor por dizer uma coisa, nem sempre diz a outra, e muitas vezes não indica o modo de executar o declarado na revelação. Ordinariamente tudo o que se pode fazer por indústria ou conselho humano, Deus não o faz nem o diz por si mesmo, ainda tratando mui freqüentemente, e com muita intimidade com alguma alma. Como já dissemos, muito bem sabia disso S. Paulo, quando foi conferir o seu Evangelho, mesmo estando convencido de que o recebera por revelação divina. Eis ainda outra clara prova tirada do Êxodo. Deus, embora tivesse relações tão íntimas com Moisés, nunca lhe havia dado o conselho tão salutar que lhe deu Jetro, seu sogro, induzindo-o a escolher outros juízes para ajudá-la nos seus afazeres, para o povo não ficar esperando da manhã à noite (Ex 18,21-22). Deus aprovou esta sábia medida, que não quisera aconselhar diretamente a Moisés; porque era conselho ao alcance do raciocínio e juízo humano. Do mesmo modo tudo o que nas visões e palavras interiores pode ser resolvido por meio humano, não o costuma Deus revelar; sua intenção é que os homens recorram a esse meio, a não ser nas coisas da fé, superiores a todo juízo e toda inteligência criada, sem, todavia, lhes serem contrárias.

14. Ninguém imagine que, pelo fato de tratar familiarmente com Deus e seus santos, há de saber por modo sobrenatural os próprios defeitos, podendo conhecê-las por outra via. Não existe motivo para ter segurança em agir assim; com efeito, lemos nos Atos dos Apóstolos que S. Pedro, chefe da Igreja, instruído diretamente pelo Senhor, errou mantendo entre os gentios o uso de certa cerimônia judaica. Todavia guardava Deus o silêncio a tal ponto que S. Paulo foi obrigado a censurar S. Pedro, como ele próprio o afirma: “Mas quando vi que não andavam direito segundo a verdade do Evangelho, disse a Pedro, diante de todos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como os judeus, por que obrigas tu os gentios a judaizar?” (Gl 2,14). E O Senhor não advertia diretamente a S. Pedro de sua falta; porque aquela simulação era coisa que podia saber por via ordinária e racional.

15. Ver-se-á, no dia do juízo, o Senhor castigar faltas e pecados de almas honradas na terra com suas relações íntimas e favorecidas com muitos dons e luzes: porque, demasiadamente confiantes naquele trato familiar com Deus, descuidaram-se de muitas coisas que cabiam dever fazer. E, como disse Cristo no Evangelho, cheias de espanto exclamarão: “Senhor, Senhor, não é assim que profetizamos em teu nome, e em teu nome expelimos os demônios, e em teu nome obramos muitos prodígios?” E o Senhor lhes responderá: “Pois eu nunca vos conheci; apartai-vos de mim, os que obrais a iniqüidade” (Mt 7,22-23). Nesse número estão o profeta Balaão e outros semelhantes que, embora lhes tivesse Deus falado, e concedido graças, eram pecadores. Repreenderá também o Senhor, de modo relativo, aos seus escolhidos e amigos, com os quais na terra se comunicou mui familiarmente, censurando então as faltas e descuidos que hajam tido; porque nessas faltas não era mister serem admoestados diretamente pelo Senhor, visto como pela lei e razão naturais já de os advertia.

16. Terminando este assunto, chegamos à seguinte conclusão: a alma deve confiar logo a seu diretor espiritual com clareza, exatidão, verdade e simplicidade, todas as graças sobrenaturais recebidas.

(…)

(São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo, cap. XXII)

Pergunta É um prazer me dirigir ao senhor cônego. Sou professor, com curso superior. Estou participando de um estudo bíblico com pessoas de diferentes religiões. Sou católico. As polêmicas aparecem. Surgiu o assunto da veneração dos santos e Nossa Senhora. Fui desafiado a mostrar como eles, já mortos, podem ser oniscientes, onipresentes e onipotentes, intercedendo para fiéis do mundo inteiro, ao mesmo tempo. Vi uma explicação num site da internet, mas eu mesmo não fiquei convencido com ela. O senhor teria como me colocar isto de forma convincente e clara? Por que pedirmos aos santos e Nossa Senhora, se é Deus que tem que transmitir a eles, para depois eles rogarem a Deus por nós? Não é estranho?

Resposta — Se as pessoas de outras “religiões” participam do “estudo bíblico”, não é difícil identificar a objeção como sendo de origem protestante, pois são eles que se empenham em combater a intercessão dos santos, e em particular de Nossa Senhora. Mas deixando a origem da objeção de lado — pois não nos interessa polemizar aqui com os protestantes — a teologia católica de há muito já se pôs o problema e oferece a solução para ele.

Cônego José Luiz Villac

Duas situações absolutamente diversas

Para entendê-la, é preciso começar por considerar que a situação dos homens nesta Terra é absolutamente distinta da situação das almas após a morte. Pois a vida nesta Terra está obviamente condicionada pelas variáveis espaço/tempo, sensíveis, enquanto as almas depois da morte se situam na eternidade. Ora, escapa totalmente à compreensão humana a correlação entre situações tão diversas: tempo/eternidade.

Ao falar de eternidade, não podemos concebê-la como um fluir contínuo de instantes, que não têm fim. Assim, quando, nas aulas de Catecismo, se procura inculcar nas crianças a noção de eternidade, apela-se por vezes para a idéia de um passarinho que, com o bico, tirasse do Pão de Açúcar um grãozinho de terra a cada cem anos. Quando tal processo de demolição estivesse concluído, a eternidade estaria apenas começando. A comparação é didática para introduzir as crianças, e mesmo os adultos, na noção de eternidade, mas de fato estamos jogando com comparações que, se analisadas do ponto de vista filosófico e teológico, são inadequadas. Pois a eternidade é um contínuo presente, e não um suceder de instantes. Como foi dito, e convém repetir, trata-se de uma noção que excede totalmente a nossa compreensão, enquanto vivemos neste mundo terreno.

Por aqui já se vê o extremo cuidado com que é preciso tratar a questão do relacionamento dos homens nesta Terra com as almas que estão no Céu in conspectu Altissimi.

Deus é visto “totus sed non totaliter”

Dizem os teólogos que Deus é visto pelos bem-aventurados no Céu totus sed non totaliter (todo mas não totalmente). Só Deus pode conhecer-se inteiramente a Si mesmo. Os santos na pátria celeste vêem a Deus todo, mas não o abarcam em seu conhecimento.

Pela fé, que é uma semente de visão beatífica, já nesta Terra temos um conhecimento, por assim dizer noturno, de Deus. O que d’Ele sabemos pela Revelação, isto é, o que Deus revelou de Si mesmo no Antigo e no Novo Testamento, por Seu Divino Filho Nosso Senhor Jesus Cristo, nos dá apenas alguns elementos daquele Ser ao infinito esplendoroso que Ele efetivamente é. Por isso, de Deus, é infinitamente mais o que nos restaria conhecer.

Mas podemos ter também um conhecimento natural de Deus, pela luz da razão. Conhecimento inferior, muito imperfeito, mas autêntico. Sendo Deus um ser infinito em todos os seus atributos, a mente humana não pode obviamente abarcá-Lo, e o que d’Ele podemos deduzir pelo lumen de nossa razão é um balbucio — infinitamente menos do que Ele é na realidade.

Postas as coisas nestas dimensões — o infinito de Deus em relação ao finito do homem — podemos abordar, com as limitações daí decorrentes, a questão proposta pelo consulente.

Onisciente, onipresente e onipotente, só Deus

Os santos não precisam ser oniscientes, onipresentes e onipotentes para atender às nossas orações. Pois eles vivem (atualmente, apenas as suas almas, uma vez que a ressurreição dos corpos se dará somente no fim do mundo, exceção feita de Nosso Senhor e Nossa Senhora) na presença de Deus altíssimo, e n’Ele vêem todas as coisas que Deus quer que eles vejam. Para isso, suas almas foram dotadas, pelo poder de Deus, de uma potência superior, chamada visão beatífica, de que as almas humanas aqui na Terra não desfrutam. E, na luz da visão beatífica, têm conhecimento de todas as orações que os homens fazem na terra, pedindo sua intercessão junto a Deus.

Como isto é possível, uma vez que provavelmente várias pessoas estarão, ao mesmo tempo, recorrendo à sua intercessão, nas mais diversas partes do mundo? Aqui entra a incapacidade da compreensão humana de entender a correlação tempo/eternidade, de que falamos de início. Em outras palavras, é para nós, na atual condição aqui na Terra, um mistério que escapa à nossa compreensão. Somente no Céu entenderemos como isso se passa, quando também nós sendo salvos alcançarmos, pela graça de Deus, a visão beatífica. E, assim mesmo, a visão beatífica, embora implique na capacidade de ver Deus face a face, como nos ensina a teologia católica, não significa que nossa inteligência conseguirá abarcar todo o mistério da divindade. Assim, no Céu, nunca ficaremos entediados, pois, de um lado, sempre descobriremos coisas novas em Deus e, de outro lado, qualquer aspecto de Deus que contemplarmos será suficiente para nos extasiar por toda a eternidade!…

Por isso dizia São Paulo: “O olho não viu, nem o ouvido ouviu, nem entrou no coração do homem o que Deus preparou para aqueles que o amam” (I Cor 2,9).

Nada de estranho na rogação dos Santos

Voltando à objeção proposta ao nosso consulente, durante o tal “estudo bíblico”, nada há de estranho em que Deus queira associar às graças que concede aos homens a intercessão dos santos em nosso favor. Pois, ao criar o homem, Deus o constitui desde o princípio como seu instrumento para a edificação e governo do mundo, para a transmissão da vida, e sobretudo, por Cristo e em Nosso Senhor Jesus Cristo, para a transmissão e comunicação da fé aos demais homens, para cuja salvação cooperamos. “Dei enim sumus adjutores” — dizia São Paulo (I Cor 3,9). E no Céu não cessa tal colaboração, antes aumenta, pois os Santos aí desempenham uma função ainda mais elevada, que é a de ajudar os que estão nesta Terra a se encaminharem para o Céu, com seu poder de intercessão junto a Deus.

A idéia de que nossas orações chegam diretamente a Deus, que depois as “transmite” aos santos, para que estes a reapresentem diante do trono do Altíssimo, é uma maneira imprecisa de se referir à visão beatífica, pela qual os Santos vêem diretamente em Deus as súplicas que os homens nesta Terra lhes dirigem. Formulada em termos mais precisos, como procuramos fazer, nada há de estranho nesse conhecimento que os santos têm, pela visão beatífica, de nossas perorações a eles dirigidas.

Por outro lado é patente, na objeção, a implicância do espírito racionalista protestante contra tudo que signifique valorizar a colaboração do homem na salvação eterna de seus irmãos. Para nós católicos, o fato de Jesus Cristo ser apontado na Escritura como único Mediador entre Deus e os homens (cfr. I Tim 2,5) não significa que Ele não possa associar outras criaturas — anjos e santos, e sobretudo Nossa Senhora — a essa Mediação.

Não esqueçamos que os santos são amigos de Deus, segundo a palavra de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Não mais vos chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o senhor. Mas chamei-vos amigos” (Jo 15,15). E o que há mais natural do que um amigo querer prestigiar seu amigo, associando-o às suas principais obras?

E quem, entre os amigos de Cristo, foi maior e mais amado por Ele do que sua Mãe Santíssima? Por isso Ele a constituiu Medianeira universal de todas as graças. Tese que horripila os protestantes, e a nós católicos enche de gozo e é uma verdade de Fé.

Espero que estas considerações ajudem o prezado consulente a enfocar adequadamente a questão que lhe foi proposta, e para a qual pediu o nosso auxílio, de modo a enfrentar vitoriosamente os seus opositores.

[Extraído de www.catolicismo.com.br]

Quando dizemos que a Sagrada Eucaristia é o maior dos sacramentos, afirmamos algo evidente. O Batismo é, sem dúvida, o sacramento mais necessário; sem ele, não podemos ir para o céu. No entanto, apesar das maravilhas que o Batismo e os outros cinco sacramentos produzem na alma, não são senão instrumentos de que Deus se serve para nos, dar a sua graça; mas na Sagrada Eucaristia não temos apenas um instrumento que nos comunica as graças divinas: é-nos dado o próprio Dador da graça, Jesus Cristo Nosso Senhor, real e verdadeiramente presente.

“A Eucaristia é «fonte e centro de toda a vida cristã» (LG 11). «Os restantes sacramentos, porém, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa Páscoa» (PO 5)” (n. 1324).

O sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo tem tido muitos nomes ao longo da história cristã: Pão dos Anjos, Ceia do Senhor, Sacramento do altar e outros que nos são bem conhecidos. Mas o nome que permaneceu desde o princípio, o nome que a Igreja dá oficialmente a este sacramento é Sagrada Eucaristia. Provém do Novo Testamento. Os quatro escritores sagrados – Mateus, Marcos, Lucas e Paulo – que nos narram a Última Ceia dizem-nos que Jesus tomou o pão e o vinho em suas mãos e “deu graças”. E assim, da palavra grega eucharistia, que significa “ação de graças”, resultou o nome do nosso sacramento: Sagrada Eucaristia.

O Catecismo ensina-nos que a Eucaristia é ao mesmo tempo sacrifício e sacramento. Como sacrifício, a Eucaristia é a Missa, a ação divina em que Jesus, por meio de um sacerdote humano, transforma o pão e o vinho no seu próprio corpo e sangue e continua no tempo o oferecimento que fez a Deus no Calvário, o oferecimento de Si próprio em favor dos homens.

“A sagrada Eucaristia completa a iniciação cristã. Aqueles que foram elevados à dignidade do sacerdócio real pelo Batismo e configurados mais perfeitamente a Cristo pela Confirmação, esses, por meio da Eucaristia, participam, com toda a comunidade, no próprio sacrifício do Senhor. […] A Eucaristia é o memorial da Páscoa de Cristo, a atualização e oferecimento sacramental do seu único sacrifício, na Liturgia da Igreja que é o seu Corpo” (ns. 1322 e 1362).

O sacramento da Sagrada Eucaristia adquire o seu ser (ou é “confeccionado”, como dizem os teólogos) na Consagração da Missa; nesse momento, Jesus torna-se presente sob as aparências do pão e do vinho. E enquanto essas aparências permanecerem, Jesus continua a estar presente e o sacramento da Sagrada Eucaristia continua a existir nelas. O ato pelo qual se recebe a Sagrada Eucaristia chama-se Sagrada Comunhão. Podemos dizer que a Missa é a “confecção” da Sagrada Eucaristia e que a comunhão é a sua recepção. Entre uma e outra, o sacramento continua a existir (como no sacrário), quer o recebamos, quer não.

Ao tratarmos de aprofundar no conhecimento deste sacramento, não temos melhor maneira de fazê-lo do que começando por onde Jesus começou: por aquele dia na cidade de Cafarnaum em que fez a mais incrível das promessas, a de dar a sua carne e o seu sangue como alimento da nossa alma.

“Os milagres da multiplicação dos pães – quando o Senhor disse a bênção, partiu e distribuiu os pães pelos seus discípulos para alimentar a multidão -, prefiguram a superabundância deste pão único da Sua Eucaristia” (n. 1335).

Na véspera, Jesus tinha lançado os alicerces da sua promessa. Sabendo que ia fazer uma tremenda exigência à fé dos seus ouvintes, preparou-os para ela. Sentado numa ladeira, do outro lado do mar de Tiberíades, tinha pregado a uma grande multidão que o havia seguido até ali, e agora, já ao cair da tarde, prepara-se para despedi-los. Mas, movido de compaixão e como preparação para a sua promessa do dia seguinte, faz o milagre dos pães e dos peixes. Alimenta a multidão – só os homens eram cinco mil – com cinco pães e dois peixes; e, depois de todos se terem saciado, os seus discípulos recolhem doze cestos de sobra. Esse milagre haveria de estar presente no dia seguinte (ou deveria estar) na mente dos que o escutaram.

Tendo despedido os que o tinham seguido, subiu monte acima, a fim de orar em solidão como era seu costume. Mas não era muito fácil separar-se daquela multidão, que queria ver mais milagres e ouvir mais palavras de sabedoria de Jesus de Nazaré: acamparam por ali para passar a noite e viram os discípulos embarcar (sem Jesus) rumo a Cafarnaum, na única barca que havia. Nessa noite, depois de terminar a oração, Jesus atravessou andando as águas tormentosas do lago e juntou-se aos seus discípulos na barca, e assim chegou com eles a Cafarnaum.

Na manhã seguinte, a turba não conseguia encontrar Jesus. Quando chegaram outras barcas de Tiberíades, desistiram de procurá-lo e embarcaram para Cafarnaum. Qual não foi o seu assombro ao encontrarem de novo Jesus, que havia chegado antes deles, sem ter subido à barca que partira na noite anterior! Foi outro portento, outro milagre que Jesus fez para fortalecer a fé daquela gente (e dos seus discípulos), pois ia pô-la à prova pouco depois.

Os discípulos e os que conseguiram entrar aglomeraram-se em seu redor na sinagoga de Cafarnaum. Foi ali e então que Jesus fez a promessa que hoje nos enche de fortaleza e vida: prometeu a sua Carne e o seu Sangue como alimento; prometeu a Sagrada Eucaristia.

Se tinha poder para multiplicar cinco pães e com eles alimentar cinco mil homens, como não havia de tê-lo para alimentar toda a humanidade com um pão celestial feito por Ele?! Se tinha poder para andar sobre as águas como se fosse terra firme, como não havia de tê-lo para ordenar aos elementos do pão e do vinho que lhe emprestassem a sua aparência e para utilizá-la como capa para a sua Pessoa?! Jesus tinha preparado bem os seus ouvintes e, como veremos, eles tinham necessidade disso.

Se você tem um exemplar do Novo Testamento à mão, será muito bom que leia inteiro o capítulo sexto do Evangelho de São João. Só assim poderá captar todo o ambiente, as circunstâncias e o desenrolar dos acontecimentos na sinagoga de Cafarnaum. Vou citar somente as linhas mais pertinentes, que começam no versículo 51 e acabam no 67.

Disse Jesus: Eu sou o pão vivo que desceu do céu. […] Quem comer deste pão viverá eternamente; e o pão que eu darei é a minha carne para a salvação do mundo. Disputavam, pois, entre si os judeus, dizendo: Como pode este dar-nos a comer a sua carne? Jesus disse-lhes: Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, nela tereis a vida em vós. O que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue verdadeiramente bebida. […] Este é o pão que desceu do céu. Não é como o pão que comeram os vossos pais e morreram. O que come deste pão viverá eternamente […]. Muitos, pois, dos seus discípulos, ouvindo isso, disseram: Dura é esta linguagem, quem a pode ouvir? Jesus, conhecendo em si mesmo que os seus discípulos murmuravam por isso, disse-lhes: […] As palavras que eu vos disse são espírito e vida. Mas há alguns de vós que não crêem […]. Desde então, muitos dos seus discípulos tornaram atrás e já não andavam com ele.

Este breve extrato do capítulo sexto de São João contém os dois pontos que mais nos interessam agora: os dois pontos que nos dizem, meses antes da Última Ceia, que na Sagrada Eucaristia estarão presentes o verdadeiro Corpo e o verdadeiro Sangue de Jesus. Lutero rejeitou a doutrina da presença verdadeira e substancial de Jesus na Eucaristia, doutrina que havia sido seguida firmemente por todos os cristãos durante mil e quinhentos anos. Lutero aceitava certa espécie de presença de Cristo, ao menos no momento em que se recebesse a comunhão. Mas no terreno adubado por Lutero brotaram outras confissões protestantes que foram recusando mais e mais a crença na presença real. Na maioria das confissões protestantes de hoje, o “serviço da comunhão” não passa de um simples rito comemorativo da morte do Senhor; o pão continua a ser pão e o vinho continua a ser vinho.

Nos seus esforços por eludir a doutrina da presença real, teólogos protestantes procuraram mitigar as palavras de Jesus, afirmando que Ele não pretendia que as tomassem no seu sentido literal, mas apenas espiritual ou simbolicamente. Mas é evidente que não se podem diluir as palavras de Cristo. Sem violentar o seu sentido claro e rotundo. Jesus não poderia ter sido mais enfático: A minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue é verdadeiramente bebida. Não há forma de dizê-lo com mais clareza. No original grego, que é a língua em que São João escreveu o seu Evangelho, a palavra do versículo 55 que traduzimos por “comer” estaria mais próxima do seu sentido original se a traduzíssemos por “mastigar” ou “comer mastigando”.

Tentar explicar as palavras de Jesus como simples modo. De expressar-se levar-nos-ia a outro beco sem salda. Entre os Judeus que eram aqueles a quem Jesus se dirigia, a única ocasião em que a frase “comer a carne de alguém” se utilizava figurativamente era para significar ódio a determinada pessoa ou perseguir alguém com furor. De modo parecido,”beber o sangue de alguém” queria indicar que esse alguém sena castigado com penas severas. Nenhum desses significados – os. únicos que os judeus conheciam – se revela coerente se os aplicarmos às palavras de Jesus.

Outra prova de peso, que confirma que Jesus quis verdadeiramente dizer o que disse – que o seu corpo e o seu sangue estariam realmente presentes na Eucaristia – está em que alguns dos seus discípulos o abandonaram por terem achado a idéia de comê-lo demasiado repulsiva. Não tiveram fé suficiente para compreender que, se Jesus lhes ia dar a sua Carne e o seu Sangue em alimento, o faria de forma a não causar repugnância à natureza humana. Por isso o abandonaram, “e já não andavam com ele”.

“O primeiro anúncio da Eucaristia dividiu os discípulos, tal como o anúncio da Paixão os escandalizou: Estas palavras são insuportáveis! Quem as pode escutar? (Jo 6, 60). A Eucaristia e a Cruz são pedras de tropeço. É o mesmo mistério e continua a ser motivo de divisão. Também vós quereis ir-vos embora? (Jo 6, 67). Esta pergunta do Senhor ecoa através dos tempos, como convite do seu amor a que descubramos que s6 Ele tem palavras de vida eterna (Jo 6, 68 ) e que acolher na fé o dom da sua Eucaristia é acolhê-Lo a Ele mesmo” (n. 1336).

Jesus nunca os teria deixado ir-se embora se essa deserção fosse simples resultado de um mal-entendido. Muitas vezes antes tinha-se dado ao trabalho de esclarecer as suas palavras quando eram mal compreendidas. Por exemplo, quando disse a Nicodemos que era preciso nascer de novo, e este lhe perguntou como é que um adulto podia entrar de novo no ventre de sua mãe (cf. Jo 3, 3 e segs.); pacientemente, Jesus esclareceu-lhe as suas palavras sobre o Batismo. Mas agora, em Cafarnaum, Jesus não esboça o menor gesto para impedir que os seus discípulos o abandonem nem para lhes dizer que o haviam entendido mal. Não pode fazê-lo pela simples razão de que o tinham entendido perfeitamente e por isso o deixavam. O que lhes faltou foi fé, e Jesus, tristemente, teve que resignar-se a vê-los partir.

Tudo isto faz com que a afirmação da doutrina da presença real esteja ineludivelmente contida na promessa de Cristo, porque, se não fosse assim, as suas palavras não teriam sentido, e Jesus não falava por enigmas indecifráveis.

JESUS MANTÉM A SUA PROMESSA

Na sinagoga de Cafarnaum, quase um ano antes da sua morte, Jesus prometeu dar o seu próprio corpo e o seu próprio sangue como alimento para a salvação dos homens. Na Ultima Ceia, nas vésperas da sua crucifixão, cumpriu a sua promessa. Legou à Igreja e a cada um dos seus membros, não terras, casas ou dinheiro, mas um legado como só Deus nos podia dar: o dom da sua própria Pessoa viva.

No Novo Testamento, há quatro relatos da instituição da Eucaristia. São os de Mateus (26, 26-28), Marcos (14, 22-24), Lucas (22, 19-20) e Paulo (1 Cor 11, 23-29). São João, que é quem nos conta a promessa da Eucaristia, não se preocupa de repetir a história da instituição deste sacramento. Foi o último Apóstolo a escrever um Evangelho, e conhecia os outros relatos. Em seu lugar, decide transmitir-nos as belíssimas palavras finais de Jesus aos seus discípulos na Última Ceia.

Eis aqui o relato da instituição da Sagrada Eucaristia segundo nos conta São Paulo: O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: Tomai e comei; isto é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em. memória de mim. Igualmente também, depois de ter ceado, tomou o cálice e disse: Este cálice é o novo testamento no meu sangue; fazei isto em memória de mim todas as vezes que o beberdes.

As suas palavras não podiam ser mais claras. “isto” queria dizer “esta substância que tenho em minhas mãos e que agora que começo a falar é pão, e ao terminar não será já pão, mas o meu próprio corpo”. “Este cálice” queria dizer “este cálice que agora que começo a falar contém vinho, e ao terminar não será mais vinho, mas o meu próprio sangue”.

“Isto é o meu corpo” e “este cálice… é o meu sangue”. Os Apóstolos tomaram as palavras de Jesus literalmente. Aceitaram como um fato (e que ato de fé, essa aceitação!) que a substância que ainda parecia pão era agora o Corpo de Jesus; e que a substância que continuava a parecer vinho era agora o Sangue de Cristo.

Essa foi a doutrina que os Apóstolos pregaram à Igreja nascente. Essa foi a crença universal dos cristãos durante mil anos. No século XI, um herege chamado Berengário pôs em dúvida a verdade da presença real, e ensinava que Jesus tinha falado apenas em sentido figurado e, assim, o pão e o vinho consagrados não eram realmente o seu corpo e o seu sangue. A heresia de Berengário foi condenada por três concílios, e Berengário retratou-se do seu erro e voltou ao redil. A doutrina da presença real permaneceu indiscutida por outros quinhentos anos.

No século XVI, chegaram Lutero e a reforma protestante. O próprio Lutero não negou inteiramente a presença real de Jesus na Eucaristia. Admitia que as palavras de Jesus eram demasiado terminantes para que fosse possível explicá-las de outro modo. Mas Lutero queria abolir a Missa, bem como a adoração de Jesus presente no altar. Por isso, tratou de resolver o seu dilema ensinando que, embora o pão continuasse a ser pão e o vinho, vinho, Jesus se faz presente juntamente com as substâncias do pão e do vinho; mas sustentava que Jesus está presente apenas no momento em que se recebe o pão e o vinho; não antes nem depois.

Outros reformadores protestantes foram mais longe que Lutero e acabaram por negar completamente a presença real. Tanto eles como os teólogos protestantes que lhes sucederam sustentaram que, quando Jesus disse: ‘Isto é o meu corpo” e “Isto é o meu sangue”, lançou mão de um recurso de linguagem, e que o que queria dizer era: ‘Isto representa o meu corpo” ou “Isto é um símbolo do meu sangue”. Na sua tentativa de alterar as palavras de Cristo, tiveram que valer-se de todo o tipo de interpretações inverossímeis, mas deixaram sem resposta as razões realmente sólidas que provam que Jesus disse o que queria dizer e que quis dizer o que disse.

A primeira delas reside na solenidade da ocasião: a noite anterior à sua morte. Nela, Jesus faz o seu testamento, deixa-nos a sua última vontade. Um testamento não é um documento apropriado para empregar uma linguagem figurada; mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, os tabeliães têm, às vezes, dificuldade em interpretar as intenções do testador, quanto mais se este emprega uma linguagem simbólica.

Mais ainda: sendo Deus, Jesus sabia que, em conseqüência das palavras que ia pronunciar naquela noite, milhões e milhões de pessoas lhe prestariam culto sob a aparência de pão. Se não tivesse querido estar realmente sob essas aparências, os adoradores prestariam culto a um simples pedaço de pão e incorreriam no pecado de idolatria, e isto, certamente, não é coisa a que o próprio Deus quisesse induzir-nos, preparando o cenário e utilizando obscuros modos de falar.

Que os Apóstolos tomaram literalmente as palavras de Jesus é evidente, pois os cristãos creram desde os primórdios na presença real de Jesus na Eucaristia. De ninguém mais, além dos Apóstolos, poderiam ter obtido essa crença. E quem melhor do que estes nos poderia dizer o que Cristo quis dizer? Os Apóstolos estavam lá; podiam ter perguntado a Jesus – e certamente o fizeram – todas as questões que lhes ocorressem sobre o significado das palavras que acabavam de ouvir. Às vezes, tendemos a esquecer que os Evangelhos registram apenas uma pequena parte do que se passou entre Jesus e os Apóstolos. Compilar três anos de diálogo, de perguntas e respostas, de ensinamentos, requereria um montão de livros.

Quando, na noite da Quinta-feira Santa, Jesus pronunciou as palavras: ‘1sto é o meu corpo” sobre o pão, e “Isto é o meu.sangue” sobre o vinho, os Apóstolos tomaram essas palavras ao pé da letra, como se prova claramente pela sua conduta posterior. Se Jesus lançou mão de uma metáfora, se o que na realidade quis dizer era: “Este pão é como que um símbolo do meu corpo e este vinho significa o meu sangue; portanto, cada vez que os meus seguidores se reunirem e participarem de um pão e um vinho como estes, honrar-me-ão e representarão a minha morte”; se foi isto o que Jesus quis dizer, então todos os Apóstolos o entenderam mal. E, através da sua interpretação errônea, toda a cristandade – até que chegaram os protestantes – passou a adorar um pedaço de pão como se fosse Deus.

É totalmente insensato pensar que Jesus pudesse permitir que os seus discípulos caíssem num erro tão grave. Em outras ocasiões, em muitíssimas outras ocasiões, e tratando-se de matérias muito menos importantes que esta, Jesus corrige os seus Apóstolos quando o interpretam mal. Para citar um só exemplo, no Evangelho de São Mateus (16, 6-12), Jesus diz aos seus Apóstolos que estejam prevenidos contra o fermento dos fariseus e dos saduceus. Eles pensam que lhes está falando de pão real, e cochicham entre si que não têm pão. Pacientemente, Jesus, esclarece-lhes que se refere aos ensinamentos dos fariseus e saduceus, não ao pão que se come. Em outras ocasiões, quando Jesus se serve de metáforas, o próprio escritor sagrado nos esclarece o respectivo significado, como na ocasião em que Jesus disse: Destruí este templo e eu o reedificarei em três dias, e João explica imediatamente que Ele se referia ao templo do seu corpo (cf. Jo 2, 19-22). Encontramos incidentes parecidos em grande abundância nos Evangelhos, e, no entanto, querem agora fazer-nos crer que, no momento solene da Última Ceia, Jesus utilizou modos de dizer novos e estranhos, sem se darem ao trabalho de explicar qual era o seu significado.

Porque são modos de dizer novos e estranhos. Nem o pão é um símbolo natural do corpo humano, nem o vinho um símbolo natural do sangue. Se alguém cortasse uma fatia de pão e a oferecesse a outro comensal, dizendo-lhe: “Isto é o meu corpo”, este pensaria logo que estava diante de um gozador ou de um louco varrido. E é blasfemo tratar de aplicar a Jesus qualquer das duas hipóteses.

Como recurso literário, só é válido lançar mão de um modo de dizer quando o seu significado é claro. Esta clareza pode resultar da natureza da afirmação, como quando mostro uma fotografia e digo: “É a minha mãe”, ou aponto um menino irrequieto e digo: “É uma máquina de movimento contínuo”, ou digo de um cavalo veloz: “É um raio”; ou quando me ponho a explicar o sentido da metáfora; por exemplo, quando coloco uns fósforos sobre a mesa e digo: “Esta é a minha casa, e aqui está a sala de jantar”. Mas, nem pela natureza da afirmação, nem por explicações dadas, as palavras “Isto é o meu corpo” fazem sentido como metáfora.

A idéia de que Jesus teria falado em metáforas na Última Ceia torna-se ainda mais incrível se tivermos em conta que se dirigia a homens que, na sua maioria, eram uns pobres e incultos pescadores. Não tinham sido educados nas sutilezas da retórica. Mais ainda, antes de o Espírito Santo ter descido sobre eles, assombram-nos pelo seu lento entendimento das coisas. Temos um exemplo na passagem da ressurreição de Lázaro. Lemos em São João (11, 11-14) que, quando Jesus disse: O nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo, os discípulos replicaram: Senhor, se dorme, curar-se-á. Então Jesus disse-lhes claramente: Lázaro morreu. Eram mentalidades difíceis para lhes falar em metáforas!

Outra indicação de que Jesus não falava em metáforas ao instituir a Eucaristia, achamo-la nas palavras com que São Paulo conclui o seu relato da Ultima Ceia (1 Cor 11, 27-30): Portanto, todo aquele que comer este pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, a si mesmo o homem, e assim coma deste pão e beba do cálice, porque aquele que o come e bebe indignamente, come e bebe para si a condenação, não distinguindo o corpo do Senhor. É duro dizer que um homem se torna réu do Corpo e do Sangue do Senhor, que come e bebe a sua própria condenação, se o pão não é mais do que pão, mesmo que. seja pão bento, e o vinho não é senão vinho, mesmo que seja um vinho sobre o qual se tenham pronunciado umas orações.

Nós, certamente, não necessitamos de provas como as que aqui se esquematizaram para crer’ na presença real de Jesus Cristo na Sagrada Eucaristia. Cremos nessa verdade não por provas racionais, mas, primordialmente, porque a Igreja de Cristo, que não pode errar em matérias de fé e moral, assim no-lo diz. Mas sempre é útil conhecer as dificuldades com que tropeçam os que procuram interpretações pessoais nas palavras de Nosso Senhor.

Nós preferimos seguir a regra da sensatez que diz que, para conhecer o significado de uma coisa que se disse, não há melhor caminho do que perguntar a quem a ouviu ou que estava lá. Os Apóstolos estavam lá; os primeiros cristãos, os que escutaram a pregação dos Apóstolos, em certo sentido estavam lá. Mesmo nós, que herdamos uma tradição ininterrupta, em certo sentido estávamos lá. Independentemente de ser um dogma definido pela Igreja, preferimos crer nos ensinamentos dos Apóstolos e na crença unânime dos cristãos durante mil e quinhentos anos, em vez de prestar ouvidos aos ensinamentos desencontrados dos reformadores protestantes. Homens como Lutero, Karlstadt, Zwingli ou Calvino exigem demasiado quando nos pedem para crer que durante quinze séculos os cristãos permaneceram no erro e que, de repente, eles, os reformadores protestantes, encontraram a resposta certa.

JÁ NÃO É PÃO

Que aconteceu exatamente quando Jesus disse na Última Ceia (e os sacerdotes esta manhã na missa): “Isto é o meu corpo” sobre o pão, e ‘Este é o cálice do meu sangue” sobre o vinho? Cremos que a substância do pão deixou de existir completa e totalmente, e que a substância do próprio Corpo de Cristo substituiu a substância do pão, que ficou aniquilada. Cremos também que Jesus, pelo seu poder onipotente como Deus, preservou as aparências do pão e do vinho, apesar de as respectivas substâncias terem desaparecido.

Por “aparências” de pão e de vinho entendemos todas as formas externas e acidentais que de um modo ou de outro podem ser percebidas pelos sentidos da vista, do tato, do paladar, do ouvido e do olfato. A Sagrada Eucaristia ainda parece pão e vinho, ainda tem o sabor do pão e do vinho e cheira a pão e vinho, ainda é sensível ao tato como pão e vinho, e, se a partíssemos ou derramássemos, espalhar-se-ia como o pão e o vinho. Mesmo que fizéssemos um exame microscópico, eletrônico ou radiológico, só poderíamos perceber nela as qualidades do pão e do vinho. Com efeito, a observação humana só pode obter a aparência externa de qualquer coisa. A sua configuração, a sua reação a determinadas circunstâncias, as leis físicas a que parece obedecer, são as únicas questões que a ciência pode investigar. Mas a substância de uma coisa, o que lhe está subjacente, a substância como substância, está fora do alcance dos sentidos e dos instrumentos humanos.

Hoje em dia, a ciência da física nuclear teoriza que toda a matéria é uma forma de energia; que toda a matéria se compõe de partículas em movimento, carregadas eletricamente. A diferença entre um pedaço de madeira e um pedaço de ferro é simplesmente a diferença entre o número, a velocidade e a direção das partículas carregadas eletricamente que compõem os dois materiais. Mas, mesmo que um físico consiga fotografar com uma câmara eletrônica algumas dessas partículas, ainda continuará a manejar aparências. A substância como substância, aquilo que faz uma coisa ser o que é e não outra coisa, continue a estar fora do alcance dos cientistas.

Todo este tema da relação da substância (o que uma coisa é) com os acidentes (as qualidades perceptíveis de uma coisa: é uma questão filosófica, e não podemos estender-nos aqui na sua análise. Basta-nos saber, como sabemos, que, pelas palavra da Consagração, a substância do corpo de Cristo substitui a substância do vinho, ao mesmo tempo que permanecem as aparências do pão e do vinho.

Evidentemente, é um milagre; um milagre contínuo, realizado centenas de milhares de vezes por dia pelo poder infinito de Deus. A bem dizer, é um duplo milagre: é o milagre da transformação do pão e do vinho em Jesus Cristo; e o milagre adicional pelo qual Deus mantém as aparências do pão e de

vinho ainda que a substância subjacente tenha desaparecido, como se o rosto de uma pessoa permanecesse num espelho depois de a pessoa se ter retirado.

A mudança operada pelas palavras da consagração é de um tipo especial, e a Igreja teve de cunhar um termo especial para a designar: transubstanciação, que, literalmente, significa a passagem de uma substância para outra; neste caso, é uma singular espécie de mudança.

“O Concílio de Trento resume a fé católica declarando: «Porque Cristo, nosso Redentor, disse que o que Ele oferecia sob a espécie do pão era verdadeiramente o seu Corpo, sempre na Igreja se teve esta convicção que o sagrado Concílio de novo declara: pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do Corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu Sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama-lhe, com justeza e exatidão, transubstanciação» (DS 1642)” (n. 1376).

Na vida ordinária, estamos acostumados a muitas espécies de mudanças. Às vezes, são mudanças apenas aparentes, externas, como quando a água congela e se toma sólida, ou um pedaço de barro é modelado e se toma um vaso. Vemos também mudanças que afetam tanto a substância como os acidentes, como quando o vinho se transforma em vinagre ou o carvão sob pressão se toma um diamante. Tem havido mudanças milagrosas deste gênero, como a que Jesus operou em Caná, mudando a água em vinho.

No entanto, em lugar nenhum da ordem natural e, pelo que conhecemos, também na ordem sobrenatural, se produzem mudanças semelhantes à que se opera no pão e no vinho pelas palavras da consagração: uma mudança de substância sem mudança de aparências. Por esta razão, a palavra “transubstanciação” aplica-se exclusivamente a esse milagre quotidiano.

Ainda que pelas palavras da consagração o corpo de Jesus se torne presente sob as aparências do pão, e o seu sangue sob as aparências do vinho, sabemos que a Pessoa de Jesus ressuscitado dentre os mortos, não pode ser dividida. Onde está o seu corpo, deve estar também o seu sangue; e onde estão o seu corpo e o seu sangue, devem estar também a sua alma e a sua natureza divina, a que estão unidos o seu corpo e o seu sangue. Do mesmo modo, onde está o sangue de Jesus, deve estar Jesus inteiro. Em conseqüência, pelas palavras “Isto é o meu corpo”, toma-se presente não só o corpo de Jesus, como também – pelo que os teólogos chamam “concomitância”, quer dizer, por força da sua unidade de Pessoa – o seu sangue, alma e divindade. O mesmo acontece na consagração do vinho.

É por esta razão que não é necessário receber a Comunhão sob as duas espécies de pão e vinho, embora se possa fazê-la nos casos previstos pelas normas litúrgicas. Se a recebemos sob qualquer das duas, seja pão, seja vinho, recebemos Jesus todo completo e inteiro.

Jesus Cristo, todo e inteiro, está presente na Sagrada Eucaristia sob as aparências do pão e do vinho. Está presente simultaneamente em cada uma das hóstias consagradas de cada altar de todo o mundo e em cada cálice consagrado onde quer que se celebre a Santa Missa. Mais ainda, Jesus todo e inteiro está presente em cada partícula consagrada e em cada gota de vinho consagrado. Se a sagrada hóstia se divide – como o sacerdote faz durante a missa –. Jesus está totalmente presente em cada uma das partes. Se caísse ao chão uma partícula da hóstia consagrada ou se derramasse uma gota do cálice, Jesus estaria presente todo e inteiro nessa partícula e nessa gota.

E por isso que os panos de altar têm que ser lavados com a máxima reverência, porque pode· haver aderida a eles uma partícula das Sagradas Espécies. Estes panos de altar compreendem o corporal, sobre o qual se coloca a patena com a hóstia e o cálice consagrados durante a missa; a pala, o pano quadrado que cobre o cálice durante a missa; e o sangüíneo, o pano com que o sacerdote enxuga os lábios depois de consumir o precioso Sangue e seca os dedos e o cálice depois de lavar o cálice com vinho e água, ou só com água. Jesus, evidentemente, não deixa o seu lugar no céu, “à direita do Pai”, para se tomar presente na Sagrada Eucaristia. Permanece no céu e está no altar. Quem se faz presente sob as aparências do pão e do vinho é o corpo glorificado de Jesus, o seu corpo tal como está no céu.

A presença de Jesus na Eucaristia – sob dimensões tão pequenas e em tantos lugares ao mesmo tempo – parece suscitar duas aparentes dificuldades: Como pode um corpo humano estar presente num espaço tão pequeno? Como pode um corpo humano estar em vários lugares ao mesmo tempo? Estas dificuldades, é claro, são apenas aparentes. Deus assim o fez; portanto, pode ser feito. Deve-se recordar que Deus é o autor da natureza, o amo e o senhor da Criação. As leis físicas do universo foram estabelecidas por Ele, e Ele pode suspender a sua ação se assim o quiser, sem que o seu poder infinito tenha que fazer nenhum esforço.

É verdade que, segundo a experiência humana, um corpo deve ter determinada “extensão”, isto é, deve ocupar determinado espaço. Segundo a nossa experiência, um corpo deve estar num só lugar de cada vez. A multilocação (estar em vários lugares ao mesmo tempo) é algo desconhecido para nós. Pode-se, pois, afirmar que um corpo sem extensão no espaço, ou que ocupe vários. lugares ao mesmo tempo, é um impossível físico; isto é, impossível para as leis físicas. Mas esses fenômenos não são impossíveis metafisicamente; quer dizer, não há contradição intrínseca na idéia de um corpo sem extensão ou na idéia da multilocação.Uma contradição intrínseca tomá-los-ia absolutamente impossíveis; estaria neste caso, por exemplo, a idéia de um círculo quadrado, que é uma contradição nos seus próprios termos.

Talvez isto nos arraste excessivamente para o campo da filosofia. Mas os pontos que nos interessa deixar claros são: primeiro, que Jesus não está presente na Eucaristia em miniatura. Está ali na plenitude da sua Pessoa glorificada, de uma maneira espiritualizada, sem extensão nem espaço. Não tem altura, largura ou espessura.

O segundo ponto é que Jesus não se multiplica: não passa a haver muitos Jesus; também não se divide entre as diferentes hóstias. Há um só Jesus, completo e indiviso. A sua multilocação não é resultado de multiplicações e ou divisões,mas da suspensão da lei do espaço relativamente ao seu corpo sagrado. É como se estivesse num lugar, e todas as partes do espaço fossem atraídas para Ele. É fácil ver a razão pela qual a Eucaristia é chamada – e é – o sacramento da unidade. Quando comungamos – nós e os nossos companheiros de comunhão do mundo inteiro –, estamos onde Ele está. O espaço dissolveu-se para nós, e todos Juntos somos um em Cristo. Quanto tempo permanece Jesus na Sagrada Eucaristia? O tempo em que permanecem as espécies do pão e do vinho. Se um fogo repentino destruísse as hóstias consagradas do sacrário, Jesus não se queimaria. As aparências do pão e do vinho transformar-se-iam em cinzas, mas Jesus já não estaria lá. Quando, depois de comungarmos, o nosso processo digestivo destrói as aparências do pão, Jesus já não permanece corporalmente em nós; só fica a sua graça.

O PÃO, O VINHO E O SACERDOTE

Na Última Ceia, Jesus transformou o pão e o vinho no seu próprio corpo e sangue. Ao mesmo tempo, mandou os seus Apóstolos repetirem a mesma ação sagrada no futuro. “Fazei isto em memória de mim”, foi o encargo solene que lhes deu. Evidentemente, Jesus não manda coisas impossíveis e, portanto, juntamente com esse mandato conferiu-lhes o poder necessário para transformarem o pão e o vinho no seu corpo e sangue. Com as palavras ‘Fazei isto em memória de mim”, Jesus converteu os seus Apóstolos em sacerdotes.

O poder de transformar o pão e o vinho no corpo e no sangue do Salvador foi transmitido pelos Apóstolos aos homens que deveriam perpetuar o seu trabalho e partilhar da sua missão quando eles se fossem embora. E estes, por sua vez, confeririam esse poder sacerdotal a outros. E assim, de geração em geração, durante estes dois mil anos, o poder do sacerdócio foi-se transmitindo por meio do sacramento da Ordem Sagrada. De bispo em bispo, chegou até os sacerdotes de hoje.

A ação litúrgica pela qual o pão e o vinho transformam-se no corpo e no sangue do Senhor é a Santa Missa. A palavra “Missa” deriva do latim missa, que significa “despedida”. Por força de um costume da primitiva cristandade, este vocábulo passou a ser o nome da ação pela qual Jesus se torna presente na Eucaristia. A exceção dos batizados, ninguém estava autorizado a assistir ao Sacrifício eucarístico. Os futuros cristãos (chamados catecúmenos) tinham que deixar o recinto ao terminar a leitura do Evangelho e o sermão. Tanto a estes após o sermão, como ao resto da assembléia ao terminar a ação sagrada, o sacerdote dirigia a advertência oficial: “Ide, é a despedida”, em latim Ite missa est. Pelo uso, a palavra “missa” passou a designar o Sacrifício eucarístico completo.

Teremos ocasião de estudar mais adiante a Missa como sacrifício. Aqui queremos apenas indicar que é nela que o pão e o vinho são transformados no corpo e no sangue de Cristo, mudança que tem lugar quando o sacerdote, fazendo-se instrumento livre e voluntário de Cristo, pronuncia sobre essas espécies as palavras do Senhor “Isto é o meu Corpo” e “Este é o cálice do meu Sangue”. De pé no altar, como representante visível de Jesus, o sacerdote humano “aciona” o poder infinito de Cristo, e Cristo, pela força do Espírito Santo, torna-se presente no mesmo instante sob as aparências do pão e do vinho.

Nessas palavras – que são chamadas palavras da Consagração – está a essência da Missa, e só elas, e não as demais orações e cerimônias (à exceção da comunhão do sacerdote, que completa a missa), são a Missa. Isto requer, naturalmente, que o sacerdote tenha a intenção de consagrar o pão e o vinho. Se, por exemplo, almoçando a uma mesa em que houvesse pão e vinho, um sacerdote se pusesse a narrar a Ultima Ceia aos demais comensais, e ao fazê-lo pronunciasse as palavras da consagração, é evidente que não haveria consagração, porque o sacerdote não teria essa intenção.

Só o pão feito de trigo se pode converter no corpo de Cristo, visto Jesus ter utilizado pão de trigo na Última Ceia. Se as palavras da consagração fossem pronunciadas sobre pão feito de outra espécie de grão, como aveia, centeio ou milho, por exemplo, não haveria transubstanciação.

Qualquer pão de farinha de trigo serve. No entanto, a Igreja de rito latino requer que só se utilize pão ázimo, quer dizer, sem fermento. Esta antiqüíssima lei da Igreja de rito latino baseia-se em que, com toda a probabilidade, Jesus utilizou pão ázimo visto ter celebrado a Última Ceia “no primeiro dia dos ázimo”, um período de sete dias em que os judeus só comiam pão sem fermento.

Não obstante, a Igreja Católica de rito grego, como a maioria das igrejas orientais, usa pão com fermento para a missa, e é tão missa como a nossa. Mas, quer tenha fermento quer não, o pão deve ser de trigo.

Como Jesus utilizou vinho de uva na Última Ceia, só se deve usar vinho de uva para a missa. Se as palavras da consagração se pronunciassem sobre vinho feito de outra fruta (como vinho de cerejas ou de ameixas), não produziriam efeito. O corpo e o sangue do Senhor não se fariam presentes. Só o sumo puro fermentado de uva pode ser utilizado na missa.

Uma vez que o pão e o vinho se tenham transformado no corpo e no sangue de Cristo, o nosso Salvador permanece presente enquanto as aparências do pão e do vinho se conservarem intactas. Por outras palavras, Jesus está presente na Sagrada Eucaristia não somente durante a missa, mas enquanto as hóstias consagradas na missa continuarem a manter as aparências de pão. Isto quer dizer que devemos à Eucaristia a adoração que se deve a Deus, já que a Sagrada Eucaristia contém o próprio Filho de Deus. Adoramos a Eucaristia com culto de latria, que é o culto reservado exclusivamente a Deus.

Na Igreja primitiva, a adoração a Jesus sacramentado era praticada apenas dentro da missa. A devoção ao Santíssimo Sacramento fora dela – tão familiar nos nossos dias – desenvolveu-se lenta e gradualmente. Parece que os cristãos demoraram bastante tempo a perceber plenamente o tesouro que tinham na Eucaristia. Só no século XII é que nasceu o costume de reservar a Sagrada Eucaristia para a adoração dos cristãos fora da missa. A partir daí, a devoção ao Santíssimo Sacramento desenvolveu-se rapidamente.

“A sagrada Reserva (no Sacrário) era a princípio destinada a guardar, de maneira digna, a Eucaristia, para poder ser levada aos doentes e ausentes, fora da missa. Pelo aprofundamento da fé na presença real de Cristo na sua Eucaristia, a Igreja tomou consciência do sentido da adoração silenciosa do Senhor, presente sob as espécies eucarísticas. Por isso, o sacrário deve ser colocado em lugar particularmente digno da igreja; deve ser construído de tal modo que sublinhe e manifeste a verdade da presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento” (n. 1379; cf. também os ns.1378 e 1380-1).

Hoje, em cada igreja católica, há um tabernáculo, um saerário. Esse tabernáculo (do latim tabemaculum, que significa “tenda”) é uma caixa coberta normalmente com um véu, que se

identifica por uma luz que arde na lamparina do sacrário. Dentro dela, Jesus está presente, tanto na hóstia grande que se usa na bênção solene, e que se guarda numa caixa de metal, como nas hóstias pequenas, guardadas numa copa – o cibório –, que é utilizada para distribuir a comunhão aos fiéis.

A partir do momento em que se começou a estender a devoção à Sagrada Eucaristia fora da missa, três práticas devotas se tomaram universais: a festa e procissão do Corpus Christi, a exposição e bênção com o Santíssimo Sacramento e a devoção das Quarenta Horas.

A festa do Corpus Christi, do Corpo de Cristo, originou-se na diocese de Liege, na Bélgica, no ano de 1246, e dezoito anos mais tarde o Papa Urbano IV estendeu-a a toda a Igreja. O Corpus Christi é celebrado sempre na quinta-feira seguinte ao domingo da Santíssima Trindade. Parte da celebração consiste na procissão do Corpus, que pode ser nesse dia ou no domingo seguinte, se houver razões para isso. Nessa procissão, a Sagrada Eucaristia é levada na chamada custódia ou ostensóno, que significa literalmente “caixa para mostrar”. O ostensório é uma caixa circular de ouro, prata ou metal, montada sobre um suporte. Nas procissões e nas bênçãos solenes, a lúnula que contem a Sagrada Hóstia é inserida no ostensório, para que todos os participantes a possam ver. O rito eucarístico a que chamamos bênção com o Santíssimo Sacramento foi introduzido gradualmente a partir da instituição da festa do Corpus Christi. Tomou-se costume expor o Santíssimo Sacramento para adoração dos fiéis, e logo houve um desenvolvimento adicional desse costume, concluindo-se o ato com a bênção dos assistentes, que o sacerdote dá com o Santíssimo. O rito da bênção, tal como hoje o conhecemos, remonta ao éculo XIV. Consiste num breve período de exposição e adoração, em que se medita a Sagrada Escritura, se cantam hinos, se dizem orações, se adora e reza em silêncio, terminando com a bênção que o sacerdote dá com o ostensório ou o cibório. E a bênção do próprio Jesus na Sagrada Eucaristia.

A devoção das Quarentas Horas foi iniciada em Milão, no século XVI. Originariamente, consistia em 40 horas ininterruptas de adoração ao Santíssimo Sacramento exposto, em comemoração das quarenta horas em que o corpo de Jesus permaneceu no sepulcro. O bispo, se o julgar oportuno, pode fixar a cada paróquia e comunidade religiosa certas datas para que cada semana, em algum lugar da diocese (a não ser que esta seja muito pequena), se assegure a prática dessa devoção e assim se ofereça a Jesus sacramentado uma adoração perpétua.

[Trecho do livro A fé explicada, Leo J. Trese, p. 298-316]

Pergunta Na minha cidade está havendo uma proliferação enorme de seitas protestantes. Seus adeptos abordam muitas vezes os católicos a fim de criticar nossa Religião dizendo coisas estranhas, como por exemplo, que só Jesus Cristo salva, que Ele não precisa de medianeiros para ajudá-Lo; que Nossa Senhora é adorada pelos católicos, etc. Como muitos católicos não têm boa formação, ficam indecisos e acabam dando ouvidos a esses falsos pregadores. O Sr. poderia dar uma orientação sobre isso?

Resposta É realmente de cortar o coração ver o que está ocorrendo em tantos lugares. Infelizmente esse é um fenômeno que vai acontecendo no Brasil inteiro, com seitas pululando por toda parte, tanto nas grandes como nas pequenas cidades, deixando aflitos os verdadeiros católicos.

Cônego José Luiz Villac

Creio que não estaríamos enfrentando os problemas acima descritos se a Santa Igreja não estivesse em meio à turbulência que atinge a humanidade inteira, nessa crise profunda por que está passando.

Mas sabemos e professamos que “as portas do inferno não prevalecerão contra Ela”! Sabemos também que a sociedade civil, separada da única e verdadeira Igreja, torna-se um corpo sem alma, um cadáver fadado à decomposição. A Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, por sua Sagrada Hierarquia e seus ministros, é “o sal da terra e a luz do mundo”, única – porque divina – capaz de retirar a humanidade do caos em que se encontra.

“A fumaça de satanás dentro da Igreja”

O Papa Paulo VI afirmou ter a sensação de que a fumaça de satanás havia penetrado na Igreja 1, na qual, segundo o mesmo Pontífice, “alguns praticam a autocrítica, dir-se-ia até a autodemolição” 2. Em outras palavras, a turbulência a que nos referimos, o terremoto atinge a própria barca de Pedro. “Fumaça de satanás”, “autodemolição”!, alerta Paulo VI.

Face a essa situação, ficam os bons sacerdotes obrigados a dar assistência a uma grande quantidade de povo e não dão conta de tudo. Além disso — é com muita dor que o digo — infelizmente também existem padres que, envolvidos pela voragem do mundo moderno, dão escândalos, quer pregando quase unicamente a revolução social, quer violando seus sagrados votos e coonestando o desenfreado permissivismo de nossos dias no campo dos costumes. Com isso estes fiéis se sentem órfãos, escandalizados pelo que vêem. “Fumaça de satanás”… “autodemolição”…

Sem uma Fé firme, que os ajude a distinguir a parte humana da Igreja, daquilo que é instituição divina, os fiéis começam a dar ouvidos aos lobos com pele de ovelha, que apresentam soluções falaciosas, que não valem nada, mas que iludem, seduzem e desviam as almas da verdadeira Igreja.

Daí essa proliferação de seitas protestantes e orientais — às centenas! — que em outras épocas jamais teriam a audiência dos católicos no Brasil. Pois estava impressa na alma católica a verdade de Fé divina de que “fora da Igreja para ninguém pode haver salvação” (Denzinger – Umberg, 430). Tal verdade era também realçada nos cursos de Teologia nos Seminários, e constantemente pregada nos púlpitos.

Os crentes não têm autoridade alguma

O que dizer a respeito desses protestantes?

Como acreditar em homens que, embora tendo nos lábios citações da Bíblia, interpretam-na a seu bel-prazer, baseados num livre exame arbitrário e gratuito, desconhecendo e negando o único e autêntico Magistério, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo e confiado a São Pedro e aos Apóstolos para a genuína interpretação das Sagradas Escrituras?

Ao afirmarem que só Nosso Senhor Jesus Cristo salva e que é o único Medianeiro, os protestantes repetem um ensinamento da Igreja, mas que não tem o caráter frio, exclusivista e distorcido que eles comunicam a essa verdade.

Ele é o Medianeiro único no sentido de que, sem Ele, não teria havido a Redenção, uma vez que só um Homem-Deus poderia reparar à altura o pecado cometido contra o próprio Deus por nosso pai comum, Adão.

Mas isso não quer dizer que, junto a Ele, também não existam outros medianeiros. E sobretudo a Medianeira por excelência, que é sua Mãe Santíssima, obra-prima da criação na qual Deus, depois da Humanidade Santíssima do Divino Filho, colocou todas as suas complacências.

Os protestantes não percebem que, negando a mediação de Nossa Senhora e dos Santos, eles estão negando a própria ordem natural criada por Deus, que é esplendidamente escalonada, dando mais a uns que a outros, para que todos os reinos do universo refletissem a indescritível policromia de suas perfeições. De sorte que os que têm mais, ou sejam mais perfeitos, sirvam não só de sustentáculos aos que têm menos, mas também de “medianeiros” junto aos superiores de ambos.

Esses mesmos protestantes, quando se trata, não de matéria de Fé, mas digamos, de negócios, esquecem-se de suas concepções frias e hirtas, e vão atrás de “medianeiros”. Por exemplo, são capazes de dizer: “Vou conversar com fulano, para ele ME CONSEGUIR um emprego na firma tal. Vou pedir para ele INTERCEDER junto ao diretor, que é amigo dele”. O que é isso, senão uma relação de mediação? É a ordem natural! É a Sabedoria e Providência de Deus!

Por que então não vale essa regra para a vida sobrenatural? Vê-se que os hereges caem na maior contradição e não vêem a realidade que transparece com tamanha evidência. Quando não são subjugadas, as paixões cegam e levam à obstinação.

Como explicar o ódio dos protestantes a Nossa Senhora?

Exemplo marcante de tal ódio foi a fúria com que um desses hereges se lançou contra uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, diante das câmaras de televisão, por ocasião de sua festividade, em 12 de outubro de 1995. Fato este comentado por Catolicismo em sua edição de janeiro de 1996.

Qualquer filho vendo uma outra pessoa odiar sua própria mãe, se acenderia em santa cólera. Então, como esperar agradar a Nosso Senhor Jesus Cristo, votando desprezo e ódio a Nossa Senhora, sua verdadeira e excelsa Mãe? Não vêem que o amor e a veneração a um não excluem o amor e a veneração ao outro?

Só há uma diferença: tal amor e veneração, quando se trata do Homem-Deus, chama-se adoração. É o culto de latria. Quando se trata de Nossa Senhora, denomina-se hiperdulia, que é um grau abaixo. E, quando se trata de santos, intitula-se culto de dulia.

Nosso Senhor Jesus Cristo, o Divino Verbo Encarnado, que mandou “honrar pai e mae” no 4º Mandamento, veria com bons olhos quem desprezasse Nossa Senhora, sua excelsa Mae, que foi Virgem antes, durante e depois do parto?

Na concepção protestante, tudo está torto, errado. Tudo é frio, sem alma, sem vida. Pregam a letra — quando pregam! — do Evangelho, mas perderam o espírito deste. E “a letra mata, mas o espírito vivifica”!

[extraído de www.catolicismo.com.br]

Os reformadores diziam ter uma missão divina.

Ora, ou os reformadores tinham uma missão divina mediata ou imediata.

Missão mediata é aquela recebida de outrem que já a possui, sendo, portanto ordinária. Imediata é a missão recebida diretamente de Deus, sendo dessa forma extraordinária.

Se os reformadores tivessem uma missão mediata, ou a teriam recebido da Igreja, ou a teriam recebido de outrem [alguns diziam que do povo].

Pela Bíblia, vemos que o povo não tem poder para dar missão a ninguém, portanto essa hipótese está descartada. Então, se fosse mediata a missão dos reformadores, eles teriam que tê-la recebido da Igreja.

Ora, ou a Igreja estava certa ou estava errada: os reformadores diziam que a Igreja estava errada, e então não poderiam ter recebido uma missão divina de tal instituição; mas se a Igreja estava certa, então os reformadores são hereges, pois dela se separaram.

Logo, a missão dos reformadores não podia ser mediata.

Vejamos então se a missão dos reformadores podia ser imediata.

Ora, a missão é imediata se recebida diretamente de Deus.

Assim, Moisés recebeu uma missão imediata na sarça ardente, a de libertar seu povo do cativeiro egípcio. Cristo também recebeu uma missão imediata, e sendo o próprio Deus, a recebeu do Pai.

O que é necessário para provar a legitimidade de tal missão?

Milagres e profecias.

Moisés fez milagres e profetizou. Cristo, mesmo sendo Deus, também os fez para provar que era verdadeira sua missão. E a Igreja, Corpo Místico de Cristo, durante toda sua história tem sido acompanhada de milagres e de profecias.

E os pseudo-reformadores do século XVI?

Nada. Nem milagres, muito menos profecias.

Logo, a missão dos reformadores tampouco pode ser imediata.

Se a missão protestante não é nem mediata nem imediata, segue que a missão protestante é falsa.

[extraído de www.montfort.org.br]

Orar ou Rezar

Pergunta Quero perguntar a diferença entre orar e rezar, já que o dicionário Aurélio fala que são sinônimos. Porém, ao celebrar a Santa Missa, o Padre às vezes fala oremos e outras vezes rezemos. Os protestantes falam que devemos orar e não rezar… E que, segundo a Bíblia, não devemos orar repetidas vezes, e por isso eles condenam o Terço.

Resposta — Como já diz a consulente e o atestam os dicionários, orar e rezar são sinônimos. A Liturgia da Santa Igreja — cuja língua materna é o latim — emprega em diversas circunstâncias o oremus, que se traduz em vernáculo por oremos ou rezemos, posto que são sinônimos.

Cônego José Luiz Villac

Orar vem do latim orare; e rezar, do latim recitare, que também deu em português recitar. Já em latim, os verbos orare e recitare têm sentidos muito próximos: o primeiro significa “pronunciar uma fórmula ritual, uma oração, uma defesa em juízo”; o segundo, “ler em voz alta e clara” (portanto, o mesmo que em português recitar). Entretanto, para orare prevaleceu na latinidade e nas línguas românicas o sentido de rezar, isto é, dizer ou fazer uma oração ou súplica religiosa (cfr. A. Ernout–A. Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine — Histoire des mots, Klincksieck, Paris, 4ª ed., 1979, p. 469).

Nós, católicos, damos ao verbo rezar um sentido bastante amplo e genérico, e reservamos a palavra oração mais especialmente — mas não exclusivamente — para os diversos gêneros de oração mental, como a meditação, a contemplação etc. Não há razão, portanto, para fazer dessa ligeira diferença, comum nos sinônimos, um tema de disputas.

Os protestantes, entretanto, salientam a diferença por dois motivos. Primeiro, porque para eles serve de senha. Com efeito, acentuando arbitrariamente essa pequena diferença de matiz entre as palavras, eles utilizam orar em vez de rezar, e assim imediatamente se identificam como crentes (como diziam até há pouco) ou evangélicos (como preferem dizer agora). Isso tem a vantagem, para eles, de detectar entre os circunstantes os outros protestantes que ali estejam. É um expediente ao qual recorrem todas as seitas dotadas de um forte desejo de expansão, como é o caso dos protestantes no Brasil.

Por outro lado, a oração, para os protestantes, não tem o mesmo alcance que para nós, católicos. Enquanto para nós o termo oração engloba todos os gêneros de oração — desde a oração de petição até as orações de louvor e glorificação de Deus — os protestantes esvaziam a necessidade da oração de petição, que para eles tem pouco ou nenhum sentido. Com efeito, como nós, católicos, sabemos, a vida nesta Terra é uma luta árdua, em que devemos pedir a Deus em primeiro lugar os bens eternos, e depois os bens terrenos de que temos necessidade. É o que ensinou Nosso Senhor Jesus Cristo.

A errônea doutrina protestante

Para os protestantes, não é preciso pedir os bens eternos, porque eles defendem erroneamente que a salvação depende exclusivamente de Deus, sem nenhuma necessidade da cooperação do homem. Segundo doutrina de muitas seitas protestantes, Deus já elaborou, desde toda a eternidade, duas listas: a lista boa, dos que irão para o Céu; e a lista negra, dos que irão para o inferno. Assim, quem está numa lista nada pode fazer para mudar de lista. Se está na lista boa, pode pecar à vontade, porque será salvo; e quem estiver na lista ruim pode rezar e fazer toda a penitência e as boas obras que quiser, que nada lhe adiantarão, pois já está condenado. Assim, a oração de petição, para eles, não tem nenhum sentido, nenhuma eficácia para a obtenção da vida eterna. Porque tanto a salvação como a condenação já estão predeterminadas desde toda a eternidade. Nestas condições, a única oração que tem algum sentido é a oração de louvor, glorificação de Deus e ação de graças. Pela escolha gratuita que Deus teria feito, de nos incluir na lista boa… Por isso, uma vez que entre nós, brasileiros, a palavra rezar, embora tenha um sentido abrangente e amplo, conforme foi explicado no início do artigo, remete mais à idéia de oração de petição, os protestantes preferem dizer orar, porque têm em vista preponderantemente a oração gratulatória (de ação de graças) e doxológica (de louvor e glória a Deus).

Quanto aos bens desta vida, tampouco tem muito sentido, para eles, a oração de petição. Pois, segundo a doutrina protestante, se temos fé — indício de que estaríamos na lista dos predestinados — Deus nos premia também com o sucesso na vida terrena. Não cabe refutar aqui essa falsa doutrina. Nossa intenção é apenas apontar a errônea — e, aliás, monstruosa — concepção teológica que está por trás de uma opção lingüística aparentemente inócua.

É louvável persistir no pedido

Para sustentar que “não devemos orar repetidas vezes”, os protestantes, como diz a missivista, apelam para a Bíblia. Provavelmente se referem ao Evangelho de São Mateus (6,7): “Nas vossas orações, não queirais usar muitas palavras, como os pagãos, pois julgam que, pelo seu muito falar, serão ouvidos”.

A interpretação deste texto de São Mateus não é entretanto a que os protestantes lhe dão. Ele significa simplesmente que a eficácia da oração não decorre da loquacidade, mas sobretudo das boas disposições do coração. As disposições sendo boas, em princípio, quanto mais se reza, melhor! E o próprio Jesus Cristo Nosso Senhor deu o exemplo de uma oração longa e repetitiva no Horto das Oliveiras, quando, prostrado com o rosto em terra, rezou por mais de uma hora, dizendo: Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice; mas não se faça a minha vontade, e sim a vossa (cfr. Mt 26, 39-44; Lc 22, 41-45).

Quanto à necessidade da insistência na oração, no Evangelho de São Lucas (11, 5-8 ) se lê a impressionante lição do Divino Mestre: “Se algum de vós tiver um amigo, e for ter com ele à meia-noite, e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, porque um meu amigo acaba de chegar a minha casa de viagem, e não tenho nada que lhe dar; e ele, respondendo lá de dentro, disser: Não me sejas importuno, a porta já está fechada, e os meus filhos estão deitados comigo; não me posso levantar para te dar coisa alguma. E, se o outro perseverar em bater, digo-vos que, ainda que ele se não levantasse a dar-lhos por ser seu amigo, certamente pela sua importunação se levantará, e lhe dará quantos pães precisar”.

A reiteração de nossos pedidos a Deus deve pois chegar a esse ponto da importunação, segundo o conselho do mesmo Nosso Senhor. E por aí se vê como os protestantes, abandonando a sabedoria da Igreja e arrogando-se o direito ao livre exame, se afastam da reta interpretação das Sagradas Escrituras, fazendo ilações lineares, sem levar em conta outras passagens sobre o mesmo tema, o que é indispensável para chegar ao verdadeiro sentido de todas elas.

Importunação do filho que enternece a mãe

Quanto à negação do valor do Terço, é mais uma vez o resultado da análise vesga que caracteriza toda a teologia protestante. O Terço é composto das mais sublimes orações: o Pai-Nosso, a Ave-Maria e o Glória ao Pai. Porém não se restringe à repetição mecânica dessas orações. Sua concepção é outra: enquanto os lábios proferem palavras sublimes, a mente se eleva à contemplação dos principais mistérios de nossa Fé e o coração se abrasa no amor de Deus e da Santíssima Virgem. Que exercício de devoção poderia haver mais precioso do que esse? Por isso os Papas o colocam logo depois da Santa Missa e do Breviário, para os sacerdotes, e da recepção dos Sacramentos pelos leigos. O Terço é uma suave importunação que enternece o Coração da Mãe de Deus, uma aparente contradição nos termos — importunação enternecedora! — que para nós, católicos, não constitui nenhum embaraço (a Bíblia a explica), mas que não entra numa cabeça protestante. Dá pena! Sobretudo dá pena que eles não tenham Nossa Senhora por mãe. É o que de pior podia lhes acontecer.

[extraído de www.catolicismo.com.br]