CAPÍTULO XXXV
Dos bens espirituais agradáveis que podem ser objeto
claro e distinto da vontade. De quantas espécies são.
1. Podemos reduzir a quatro gêneros todos os bens nos quais a vontade pode distintamente comprazer-se: os que nos movem à devoção, os que nos incitam a servir a Deus, os que nos dirigem a ele e os que nos levam à perfeição. Trataremos de cada um segundo esta ordem, começando pelos primeiros, a saber: as imagens e retratos dos santos, os oratórias e cerimônias.
2. Pode haver, quanto a essas imagens e quadros, muita vaidade e gozo inútil. Sendo tão importantes para o culto divino e tão necessários para mover a vontade à devoção como o demonstra o uso e aprovação da Santa Igreja, – e, portanto, convém nos aproveitarmos desse meio para despertar nossa tibieza, – todavia, muitas pessoas põem muito mais o gozo na pintura e ornato exterior do que no seu significado.
3. A Santa Igreja ordenou o uso das imagens para dois fins principais: reverenciar nelas os santos, e mover a vontade despertando a devoção dos fiéis, por meio delas, para com os mesmos santos. Quando esses dois efeitos se produzem, as imagens são muito proveitosas, e o seu uso necessário. E, assim, devem ser preferidas aquelas que retratam os santos mais ao vivo e ao natural, movendo a maior devoção; só este motivo justifica a preferência, e não o preço e curiosidade do feitio ou ornato exterior. Há quem repare mais na arte e valor da imagem, do que no santo nela representado. Em vez de dirigirem a sua devoção espiritual e interior ao mesmo santo invisível, põem-na no ornato e confecção material daquela imagem que deveriam esquecer, pois é apenas motivo para a alma se afervorar; e aplicam ao objeto exterior o amor e gozo da vontade com deleite e satisfação do sentido. Com este modo de agir, impedem totalmente o verdadeiro espírito que requer o aniquilamento do afeto em todas as coisas particulares.
4. Ver-se-á bem o que afirmamos, no uso detestável adotado em nossos tempos por certas pessoas que, não tendo ainda aborrecido o traje vão do mundo, adornam as imagens segundo os costumes modernos inventados cada dia pelos mundanos para seus passatempos e vaidades; e com este traje frívolo e repreensível vestem as ditas imagens. Isto aos santos sempre foi e é sumamente odioso. Parece que tais pessoas, por sugestão diabólica, querem canonizar as suas próprias vaidades, ornando com estas as sagradas imagens, não sem grave injúria aos mesmos santos. Desse modo, a honesta e séria devoção da alma, que lança e arroja de si até a sombra de qualquer vaidade, é substituída por uma espécie de ornato de bonecas; e alguns chegam a servir-se das imagens como se fossem ídolos em que põem toda a sua complacência. Vereis ainda outras pessoas que não se fartam de acrescentar imagens a imagens, e querem que sejam de tal ou qual feitio e espécie, colocadas de determinada maneira, para deleitarem ao sentido, enquanto a devoção do coração é bem diminuta. Têm tanto apego à essas Imagens, como Micas ou Labão aos seus ídolos: o primeiro saiu de casa bradando em altas vozes porque lhos roubavam, e o segundo, após ter percorrido longo caminho para os recuperar, muito encolerizado, revolveu toda a tenda de Jacó para encontrá-los (Jz 18,24; Gn 31,34).
5. A pessoa verdadeiramente devota faz do invisível o objeto principal de sua devoção; não necessita de muitas imagens, antes usa de poucas escolhendo as mais ajustadas ao divino que ao humano; procura conformar as imagens e a si mesma ao estado e condição da outra vida, e não segundo o traje e modo deste século. Têm em vista, não somente livrar o apetite de ser movido pela figura deste mundo, mas ainda não dar ocasião a que essas imagens lhe tragam a lembrança dele como aconteceria se oferecessem aos olhos alguma coisa semelhante às do século. Longe de apegar o coração às que usa, bem pouco se aflige se lhas tiram, porque busca dentro de si mesma a viva imagem de Cristo crucificado, e nele se goza por tudo lhe ser tirado e tudo lhe faltar. Até quando lhe subtraem os motivos e meios mais próprios para a sua união com Deus, fica sossegada. Efetivamente, é maior perfeição conservar-se a alma com tranqüilidade e satisfação interior na privação de todos esses meios, do que possuí-los com apego e apetite. Embora seja bom recorrer às imagens que ajudam à devoção, escolhendo por este motivo as que mais movem a alma, todavia, não é perfeito apegar-se a elas com propriedade, a ponto de entristecer-se quando lhas tiram.
6. Tenha por certo a alma o seguinte: quanto mais estiver presa a qualquer imagem ou motivo sensível, menos subirá a sua oração e devoção até Deus. Sem dúvida, podem ser preferidas algumas imagens a outras, por retratarem mais expressamente os santos, excitando assim maior devoção; mas, unicamente por esta causa, é permitido afeiçoar-se a elas, sem aquele apego e propriedade a que nos referimos. De outro modo, todo o proveito e fruto que havia de tirar o espírito em elevar-se a Deus por esses motivos de devoção, absorvê-lo-ia o sentido, estando engolfado no gozo desses mesmos instrumentos; e aquilo que me deveria ajudar a alma, por minha imperfeição me serve de obstáculo, tanto como o apego e afeição desordenada a qualquer outra coisa.
7. Sobre este ponto das imagens, talvez alguma objeção me seja feita, por quem não haja compreendido bastante a desnudez e pobreza de espírito requerida para a perfeição. Mas nada se pode opor, certamente, ao reconhecer a imperfeição muito comum insinuada na escolha dos rosários. É raro encontrar pessoa que não tenha alguma fraqueza a esse respeito, desejando que sejam de tal forma e não de outra, de cor determinada, preferindo um metal a outro, com tal ou tal ornamento etc. No entanto, Deus não ouve mais favoravelmente as orações feitas com este ou aquele, pois a matéria do objeto não tem importância alguma. As orações ouvidas por Deus são de preferência as que saem de um coração simples e verdadeiro, cuja única pretensão é agradar ao Senhor, sem cuidar deste ou daquele rosário, a não ser por causa das indulgências.
8. Tal o modo e condição de nossa vã cobiça, que em tudo quer fazer presa; como bicho roedor, come as partes sãs, e nas coisas boas e más faz o seu ofício. Com efeito, que significa a tua predileção por um rosário curiosamente trabalhado? E por que preferes seja desta matéria e não de outra, senão para assim satisfazer o teu gosto? Por que escolhes esta, imagem de preferência àquela, pelo motivo do seu preço e da sua arte, sem reparar se te inflamará mais no amor divino? Certamente, se empregasses teu apetite e gozo somente em amar a Deus, serias indiferente a isto ou àquilo. Causa grande aborrecimento ver algumas pessoas espirituais tão apegadas ao modo e feitio desses objetos e à curiosidade e vã complacência no uso deles, jamais se satisfazendo; andam sempre a trocar uns por outros, mudando e olvidando a devoção do espírito por esses meios visíveis. Muitas vezes a eles se apegam com afeto desordenado, bem semelhante ao que têm a outros objetos temporais; e deste modo de proceder resulta-lhes não pouco dano.
CAPÍTULO XXXVI
Continua a falar das imagens. Ignorância de
certas pessoas a este respeito.
1. Muito haveria que escrever sobre a pouca inteligência de muitas pessoas a propósito das imagens. Às vezes, chega a tanto a sua inépcia, que confiam mais numa imagem do que em outra, na persuasão de serem mais ouvidas por Deus por aquela do que por esta, embora ambas representem a mesma realidade, como, por exemplo, duas de Jesus Cristo ou duas de Nossa Senhora. Isto acontece porque põem a sua afeição na figura exterior, preferindo uma à outra, mostrando assim grande ignorância no modo de tratar com Deus e de prestar-lhe a devida honra e culto, o qual só olha a fé e pureza do coração daquele que ora. Se Deus concede mais graças por meio de determinada imagem do que por outra do mesmo gênero, não é porque haja na primeira algo especial para esse efeito (embora haja diferença no exterior); mas somente porque as pessoas se sentem movidas a mais devoção por meio daquela. Se tivessem a mesma devoção para com ambas as imagens (e ainda sem esses meios), receberiam os mesmos favores divinos.
2. A diferença das formas ou a beleza material da imagem não são motivo para Deus fazer milagres e mercês; serve-se o Senhor daquelas diferenças, não para as imagens serem estimadas com preferência de umas e outras, mas unicamente para despertar nas almas a devoção adormecida, e o afeto dos fiéis à oração. Ora, como por meio daquela imagem este resultado é produzido, isto é, se acende a devoção nas almas, movendo-as a mais oração (porque uma e outra são meios para Deus atender o que lhe é pedido), então costuma o Senhor conceder suas graças por aquela determinada imagem, operando milagres. Não procede Deus assim por causa da imagem, em si mesma apenas uma pintura, mas por causa da devoção e fé que as almas têm para com o santo representado. Se tivesses, pois, a mesma devoção e fé em Nossa Senhora, diante de uma como de outra imagem (pois ambas representam a mesma Senhora), receberias as mesmas graças, e ainda sem imagem alguma. Vemos por experiência como Deus faz os seus prodígios e graças por intermédio de certas imagens cuja escultura ou pintura deixa muito a desejar, não oferecendo interesse algum à curiosidade; assim o faz para impedir os fiéis de atribuírem qualquer coisa nesses prodígios à escultura ou à pintura da imagem.
3. Muitas vezes Nosso Senhor escolhe as imagens colocadas nos lugares solitários e apartados para conceder suas mercês. De um lado, porque a devoção dos fiéis aumenta com o sacrifício de se transportarem até onde elas estão, e torna mais meritório o seu ato; de outro, porque se afastam do barulho e do tumulto da multidão para orar, como fazia o divino Mestre. Por isto, quem faz alguma peregrinação, é bom fazê-la quando não vão outros peregrinos, embora seja em tempo extraordinário. Quando há grande concurso de gente, jamais aconselharia que se fizesse, pois ordinariamente se volta mais distraído do que quando se foi. Muitos fazem essas romarias mais por recreação do que por devoção. Havendo piedade e fé, qualquer imagem produz efeitos bons nas almas; mas, fora disso, nenhuma imagem trará proveito. Bem viva imagem era nosso Salvador em sua vida mortal; e, todavia, não aproveitava àqueles que não tinham fé, por mais que estivessem em sua divina companhia e presenciassem as suas obras maravilhosas. Era esta falta de fé a causa de não serem operados muitos milagres pelo mesmo Senhor em sua terra, como diz o Evangelista (Lc 4,23-24).
4. Quero declarar também aqui alguns efeitos sobrenaturais produzidos pelas imagens em certas pessoas. Deus às vezes infunde nessas imagens virtude particular, de modo a ficar impressa com muita força na mente aquela figura, e, ao mesmo tempo, a devoção causada na alma, como se estivesse sempre presente; e assim, cada vez que a pessoa se lembra da imagem, sente despertar a mesma devoção, experimentada a primeira vez que a viu, e esse efeito se produz com maior ou menor intensidade. Sucederá que em outra imagem, embora mais primorosa, não achará a mesma pessoa aquele espírito.
5. Muitas almas também sentem maior devoção diante de algumas imagens do que de outras, e não será esse efeito sobrenatural; tratar-se-á apenas de gosto ou afeição da natureza. Assim como entre as pessoas, pode haver simpatia e inclinação para uma que talvez seja menos formosa, e que, entretanto, contentará mais a alguém, ocupando-lhe a imaginação e prendendo-lhe o afeto, porque lhe agrada aquela forma e figura, do mesmo modo acontece com as imagens. Julgarão aquelas almas ser devoção o sentimento de afeto nascido de tal ou qual imagem, e não será talvez mais que afeição e gosto natural. Outras vezes, olhando uma imagem, parece-lhes vê-la mover-se ou fazer sinais e se lhes manifestar por qualquer modo, ou lhe falar. Tudo isto, bem como os efeitos sobrenaturais a que já nos referimos, pode vir da parte de Deus, produzindo bons e verdadeiros frutos, seja para aumentar a devoção, seja para proporcionar à alma alguma ajuda a que se possa apoiar em sua própria fraqueza, evitando as distrações; mas muitas vezes são astúcias do demônio, com a fim de prejudicar e iludir as almas. Portanto, daremos doutrina sobre esta matéria no capítulo seguinte.
CAPÍTULO XXXVII
Como se deve dirigir para Deus o gozo encontrado pela
vontade nas imagens, de modo a não constituírem
estas motivos de erro ou obstáculo.
1. Assim como as imagens são de grande proveito trazendo-nos a lembrança de Deus e dos seus santos, movendo a nossa vontade à devoção quando as usamos de forma conveniente, assim também podem ser fonte de inúmeros erros quando a alma não sabe dirigir-se por elas a Deus nos efeitos sobrenaturais que produzem. Um dos principais meios empregados pelo demônio para surpreender as almas incautas e afastá-las do verdadeiro caminho da vida espiritual é precisamente este de coisas sobrenaturais e extraordinárias que manifesta nas imagens, tanto nas corporais e materiais aprovadas pela Igreja, como nas representações interiores que costuma imprimir na imaginação, sob a aparência de tal ou tal santo ou da sua imagem. Transfigura-se assim o demônio em anjo de luz, dissimulando-se sob os mesmos meios que nos são dados para ajuda e remédio de nossas fraquezas, para deste modo surpreender a nossa inexperiência. Uma alma boa deve ter maior cuidado e receio naquilo que lhe parece bem, pois o mal traz consigo o próprio testemunho de si.
2. Estes são os danos encontradiços nesta matéria: ser impedida no seu vôo para Deus, servir-se das imagens de modo grosseiro e ignorante, ser enganada natural ou sobrenaturalmente por meio delas. Para evitá-las, e também para purificar o gozo da vontade no uso das imagens, dirigindo-se por elas a Deus conforme a intenção da Igreja, só uma advertência basta à alma: já que as imagens nos servem de motivo para o invisível, é necessário que a afeição e o gozo da vontade se encaminhem exclusivamente à realidade por essas imagens representadas. Portanto, tenha o fiel este cuidado: vendo a imagem, não queira embeber o sentido naquela figura, seja corporal ou imaginária, bem lavrada ou ricamente ornada; quer lhe inspire devoção sensível, ou espiritual, quer lhe manifeste sinais extraordinários. Não faça caso desses· acidentes, nem se detenha na imagem; mas eleve o espírito para o invisível que ela representa, aplicando o sabor e gozo da vontade em Deus com oração e devoção interior a ele, ou ao santo que é ali invocado. Não deixe o sentido ficar presa à pintura, impedindo o espírito de voar à realidade viva. Desta maneira, a alma não será enganada, porque não se prenderá ao que lhe disser a imagem; elevar-se-á, pelo contrário, acima do sentido, e pelo espírito, com grande liberdade, até Deus; e também não terá mais confiança numa imagem do que em outra. Quando encontrar em alguma delas sobrenaturalmente maior devoção, elevando-se logo com o afeto para Deus, receberá mais copiosas graças. Na verdade, quando o Senhor concede essas e outras semelhantes mercês, inclina o gozo e a afeição da vontade para o invisível, e assim quer sempre que o façamos, em total renúncia da força e sabor de nossas potências em relação a todo o visível e sensível.
CAPÍTULO XXXVIII
Continua a explicar os bens que movem a alma à
devoção: oratórios e lugares consagrados à oração.
1. Parece-me ter já demonstrado quanta imperfeição pode ter o espiritual quando se detém nos acessórios das imagens, e como a imperfeição é talvez mais perigosa; porque sob o pretexto de serem coisas santas, as almas se acreditam em segurança, refreando menos o atrativo natural de propriedade. Enganam-se assim freqüentemente, no gosto experimentado no uso desses objetos piedosos, imaginando-se cheios de devoção; quando, porventura, apenas se trata de tendência e apetite natural, que se aplica a esses objetos como se poderia aplicar a outros.
2. Comecemos a falar dos oratórios. Certas pessoas acrescentam imagens sobre imagens no seu oratório, comprazendo-se na ordem e ornamentação com que dispõem tudo, para ficar o mesmo oratório bem adornado e atraente. Quanto a Deus, não pensam em reverenciá-lo mais, e pelo contrário, cuidam menos disso, porque empregam todo gozo e complacência naquelas pinturas e ornatos, desviando-o da realidade invisível como dissemos. Sem dúvida, todo ornamento e decoração, e toda reverência para com as imagens é sempre pouca; por isso, aqueles que as tratam com pouco respeito e veneração são dignos de censura, bem como os pintores e escultores que as fazem tão grosseiras e imperfeitas, que antes tiram a devoção do que a aumentam. Por este motivo deveriam vedar a fabricação de imagens aos que nesta arte não são peritos. Não obstante, que relação existe entre o culto oferecido às imagens e o espírito de propriedade, apego e apetite nesses ornamentos e atavios exteriores que de tal maneira cativam o teu sentido a ponto de impedirem tanto o teu coração de unir-se a Deus, e amá-lo esquecendo tudo por seu amor? Se faltares a este dever por causa daqueles objetos sensíveis, não somente o Senhor deixará de agradecer tudo quanto fazes, mas dar-te-á o castigo merecido, por não teres buscado em tudo seu divino beneplácito, de preferência ao teu gosto. A festa da entrada triunfal de Nosso Senhor em Jerusalém (Mt 21) apóia o que afirmamos. Enquanto o povo o recebia com palmas e cantos, Sua Majestade chorava. A causa de suas lágrimas era ver os corações tão afastados dele acreditando pagar a dívida de reconhecimento, por aqueles sinais e manifestações exteriores. Mais faziam festa a si mesmos do que a Deus. Assim acontece a muitos em nossos dias quando há alguma solenidade em qualquer lugar: costumam alegrar-se muito nos festejos e folguedos, gostando de ver e de serem vistos, ou comprazendo-se em comer ou ainda buscando outros motivos humanos, bem longe de procurarem o agradável a Deus. Nessas tendências e intenções tão baixas nenhum gosto dão ao Senhor, sobretudo, se os promotores de tais festas misturam coisas profanas e ridículas, próprias para excitar o riso e a distração dos assistentes, ou procurando atrair a atenção do povo em vez de despertar a devoção nas almas.
3. E que dizer de outras intenções de algumas pessoas nessas festas, ou quando as celebram por interesse de lucro? Estes têm o olho da cobiça mais aberto sobre o próprio ganho que sobre o serviço do Senhor. Não ignoram a insensatez da sua conduta, e Deus, que os vê, ainda melhor o sabe. Saibam que se não têm reta intenção, fazem mais festa a si do que a Deus. Tudo quanto é feito para a própria satisfação, ou para agradar aos homens, Deus não aceita como feito a si. Antes sucede muitas vezes estarem os homens folgando de tomar parte nas festas religiosas, e Deus estará se irritando contra eles, como aconteceu aos filhos de Israel cantando e dançando em torno do seu ídolo (Ex 32,7-28), imaginando honrar a Deus, quando muitos milhares dentre eles foram exterminadas pelo Senhor. Ou ainda poderá suceder como aos sacerdotes Nadab e Abiú, filhos de Aarão, que foram mortos com os turíbulos nas mãos porque ofereciam fogo estranho (Lv 10,1-2). De igual modo, o que penetrou na sala do festim sem estar revestido da túnica nupcial foi, por ordem do rei, lançado, de pés e mãos atados, nas trevas exteriores (Mt 22,12). Mostram-nas esses diversos castigos até que ponto desagradam a Deus as irreverências cometidas nas reuniões feitas em sua honra. Ó Senhor, meu Deus, quantas festas vos fazem os filhos dos homens, nas quais o demônio tem a sua parte maior do que a vossa! O inimigo se alegra nessas festas porque, aí, como tratante faz a sua féria. Quantas vezes, Senhor, podereis vós dizer nessas acasiões: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15,8), isto é, o seu culto é destituído de fundamento. Deus deve ser servido unicamente pelo que ele é, sem que se interponham outros fins: não o servir, pois, por esse motivo, é não o reconhecer como causa final de nosso culto.
4. Voltando a falar dos oratórios: há pessoas que procuram ornamentá-los mais para satisfazer a próprio gosto, que para honrar a Deus. Outras fazem tão pouco caso da devoção desses lugares como se fossem salões mundanos; e ainda outras pessoas os estimam tão pouco, a ponto de terem mais gosto nas coisas humanas do que nas divinas.
5. Mas, deixando isto de parte, dirijamo-nos aos que fiam mais fino, como se costuma dizer; queremos falar daqueles que se têm em conta de gente devota. Essas pessoas se preocupam de tal modo em contentar as próprias inclinações naturais para decorar seus oratórios, que nisso gastam todo o tempo que deveriam dar a Deus pela oração e recolhimento interior. Não compreendem que nesta desordem, sem recolhimento e paz para a alma, encontram tanta distração como nos outros cuidados temporais; a cada passo se inquietam nos seus apetites, mormente se alguém tentasse tirar-lhes aquele gozo.
CAPÍTULO XXXIX
Como se deve usar dos oratórios e igrejas,
encaminhando o espírito para Deus.
1. Para dirigir a Deus o espírito nesse gênero de bens que movem à devoção, convém advertir que é permitido e mesmo útil aos principiantes algum prazer e gasta sensível nas imagens, oratórias e outros objetos visíveis de piedade. Como não perderam ainda o gosto das coisas temporais, e não estando ainda a sua alma mortificada, este gosto sensível nos motivos de devoção lhes é indispensável para afastá-las dos prazeres terrestres. Assim acontece à criança a quem se apresenta um objeto antes de retirar o que ela tem na mão a fim de distraí-la e impedir que chore vendo-se com as mãos vazias. Para progredir, porém, na perfeição, é preciso desprender-se até dos gostos e apetites em que a vontade pode comprazer-se; porque a puro espírito não se prende a objeto algum, estabelecendo-se unicamente no recolhimento e trato íntimo com Deus. Se faz uso de imagens e oratórios, é de modo passageiro, e logo se eleva a Deus, esquecendo tudo o que é sensível.
2. É bom escolher para a oração os lugares mais aptos para tal exercício; contudo, deve-se escolher de preferência aqueles que menos embaraçam os sentidos e o espírito para a união com Deus. Pode-se aplicar, a esse respeito, a palavra de Nosso Senhor à samaritana, quando esta lhe perguntou qual era o lugar mais adequado para a oração, se o templo ou o monte. Jesus respondeu que a qualidade da verdadeira oração não estava dependendo de um ou de outro lugar, mas que o Pai se agradava daqueles que o adoravam em espírito e em verdade. Podemos concluir dessas palavras que, embora as igrejas e os oratórios se destinem, sem dúvida, exclusivamente à prece e sejam apropriados para a oração, todavia, para o íntimo trato da alma com Deus, deve ser dada a preferência aos lugares que menos possam ocupar e prender o sentido. Não existe razão para certas pessoas escolherem sítios agradáveis e amenos; em vez de recolherem o espírito em Deus, antes o detêm em recreação e gosto sensível. Um lugar solitário e mesmo agreste facilita mais a oração, pois o espírito, não sendo retido e limitado pelas realidades visíveis, sobe em vôo seguro e direto para Deus. Enfim, se os lugares exteriores algumas vezes ajudam o espírito a se elevar, é sempre sob a condição de serem logo olvidados quando a alma se une a Deus. Nosso Salvador, para nos dar exemplo, escolhia habitualmente para orar os lugares solitários, não favorecendo muito os sentidos, mas antes levantando o espírito ao céu, tais como as montanhas que se levantam da terra e ordinariamente são destituídas de vegetação, não oferecendo recreação sensível.
3. Desse modo, o verdadeiro espiritual não cuida senão em procurar o recolhimento interior, sem se prender a tal ou tal lugar, nem a esta ou àquela comodidade, porque isso seria estar atado ao sentido; busca, porém, esquecer tudo escolhendo para isto o lugar mais desprovido de objetos e encantos sensíveis, para poder gozar de seu Deus, na solidão de toda criatura. É notável ver algumas pessoas espirituais unicamente preocupadas em compor os seus oratórios e dispor os lugares de oração, segundo os próprios gostos e inclinações. Não se preocupam com o recolhimento interior; que é o mais importante; bem pouco espírito possuem, pois, se o possuíssem, não poderiam achar gosto nesses modos e maneiras; antes, achariam cansaço.
CAPÍTULO XL
Prossegue, encaminhando o espírito ao
recolhimento interior nas coisas já ditas.
1. Existem almas que nunca chegam a entrar nas verdadeiras alegrias do espírito, porque jamais suprimem definitivamente o apetite do gozo imoderado dos objetos exteriores e sensíveis. Observem bem essas almas que, se as igrejas e os oratórios materiais são lugares consagrados especialmente à oração, e se a imagem é o objeto que reaviva o fervor, isto não quer dizer que se deva empregar todo o gosto e sabor nesses meios visíveis, esquecendo de orar no templo vivo, isto é, no recolhimento interior. Para chamar nossa atenção para este ponto, o Apóstolo S. Paulo disse: “Não sabeis vós que sois templo de Deus, e que o espírito de Deus mora em vós?” (1Cor 3,16). A esta consideração nos convida a palavra, já citada, de Nosso Senhor à samaritana: “Aos verdadeiros adoradores, em espírito e verdade, é que convém adorar” (Jo 4,24). Muito pouco caso faz Deus de teus oratórios e lugares de oração bem dispostos e acomodados, se por empregares neles teu gozo e apetite tens menos desnudez interior que a pobreza de espírito na renúncia a tudo que podes possuir.
2. Se queres purificar a vontade do apetite e gozo e vã complacência nos objetos exteriores elevando-a livremente para Deus na oração, deves ter o cuidado de conservar a consciência pura e de guardar toda a tua vontade para Deus e a tua mente verdadeiramente fixa nele. E, como disse, é preciso escolheres o lugar mais afastado e solitário que puderes encontrar, aplicando então todo o gozo da vontade em invocar e glorificar a Deus. Quanto a essas pequenas satisfações exteriores, não faças caso delas, procurando antes negá-las. A alma, acostumada a saborear a devoção sensível, jamais conseguirá chegar à força do deleite espiritual achado na desnudez do espírito mediante o recolhimento interior.
CAPÍTULO XLI
De alguns danos em que caem as almas entregues
ao gozo sensível dos objetos e lugares de devoção.
1. A procura das doçuras sensíveis causa ao espiritual muitos prejuízos, interiores e exteriores. Com efeito, quanto ao espírito, jamais chegará ao recolhimento interior, que consiste em privar-se e esquecer-se de todos os gozos sensíveis, entrando no profundo centro de si mesmo, para aí adquirir com eficácia as virtudes. Quanto ao exterior, o homem encontra o inconveniente de não se acomodar em todos os lugares para orar, não se dispondo a fazê-lo senão naqueles que lhe causam gosto. E assim, muitas vezes, faltará à oração, pois, como se diz vulgarmente, só sabe ler na cartilha da sua aldeia.
2. Além disso, esta tendência natural torna-se causa de grande inconstância, porque a alma é incapaz de permanecer muito tempo no mesmo lugar e de perseverar no mesmo estado. Vê-la-eis hoje aqui, e amanhã ali; ora se retira numa ermida, ora em outra; orna um dia um oratório, e no seguinte ornará outro. Pomos nesse número as pessoas inconstantes que passam a existência mudando de estado e de maneira de viver. Como não se sustêm nos exercícios espirituais senão pelo fervor e gozo sensível, jamais fazem sérios esforços para recolher-se no seu interior pela abnegação da vontade e pela paciência em suportar as menores contrariedades. Apenas descobrem um sítio favorável à sua devoção, ou um gênero de vida adaptado ao seu gosto e ao seu humor, logo o buscam, abandonando o que anteriormente ocupavam. Mas como foram impelidas por aquele gosto sensível, depressa procuram outra coisa, porque a sensibilidade é por sua natureza inconstante e variável.
CAPÍTULO XLII
Três espécies de lugares devotos. Como a
vontade deve proceder a respeito deles.
1. Encontro três espécies de lugares próprios para mover a vontade à devoção. A primeira se acha em certos sítios, certas disposições de terreno que, pela agradável variedade dos seus aspectos, despertam naturalmente a devoção, pondo sob os nossos olhos vales ou montanhas, árvores ou uma pacífica solidão. Esses meios são vantajosos, desde que a vontade imediatamente se transporte para Deus, esquecendo-os; pois, como se sabe, para alcançar o fim não se deve usar do meio mais do que é suficiente. Se alguém procura, com efeito, recrear o apetite e satisfazer os sentidos, experimentará antes secura e distração para o espírito; porque somente o recolhimento interior é capaz de produzir gozo e fruto espiritual.
2. Portanto, chegadas a esses lugares, as pessoas, devem esquecê-las, procurando permanecer unidas a Deus no interior. Se ficam presas ao sabor e gosto do sítio, mudando daqui para ali, mais buscam recreação sensitiva e instabilidade de ânimo, do que sossego espiritual. Sabemos como os anacoretas e outros santos eremitas, nos vastíssimos e ameníssimos desertos, escolheram o menor lugar suficiente para habitarem, edificando estreitíssimas celas e covas onde, se encerravam. Em uma dessas S. Bento viveu três anos. Um outro solitário, que foi S. Simão, atou-se com uma corda a fim de não transpor os limites fixados por esse laço voluntário; e, assim, grande número, de outros, cuja enumeração seria demasiado longa. Esses santos estavam persuadidos de que, se não extinguissem a cobiça e o apetite de achar gosto e sabor espiritual, jamais chegariam a ser espirituais.
3. A segunda espécie é mais particular: são alguns lugares onde Deus se digna conceder a certas pessoas favores espirituais excelentes e muito saborosos. Seja no meio dos desertos ou fora deles, pouco importa. As almas favorecidas por essas graças inclinam-se instintivamente para o lugar onde as receberam, sentindo, muitas vezes, grandes desejos de aí voltar. Todavia, isso não significa que tornem a encontrar as mesmas graças, já uma vez recebidas, pois não dependem de sua própria vontade. Deus concede esses favores quando, como e onde lhe apraz, sem prender-se a lugar, ou tempo, nem ao arbítrio daquele a quem os concede. Se o coração estiver despojado de todo apego, poderá ser-lhe útil ir orar algumas vezes nesses lugares, e isto por três razões. Primeiramente, ainda que Deus não se prenda a um lugar particular, para conceder suas graças, parece desejar receber nesse mesmo lugar os louvores da alma, tendo-lhe ali outorgado os favores. A segunda razão é sentir a alma maior necessidade de testemunhar o seu reconhecimento pelos benefícios recebidos quando se encontra naquele sítio. A terceira razão consiste em despertar-se mais a devoção com a lembrança do que ali recebeu.
4. Por essas razões, o desejo de rever esses lugares é sempre louvável; mas, ainda uma vez, não se deve imaginar que Deus esteja obrigado, por um primeiro benefício, a renovar os seus dons sempre no mesmo lugar, sem poder fazê-lo em outros; aliás, a própria alma é centro mais conveniente e mais apto para as graças de Deus do que qualquer lugar exterior. Lemos na Sagrada Escritura que Abraão erigiu um altar no próprio sítio onde Deus lhe aparecera, e invocou ali seu santo nome. Mais tarde, na sua volta do Egito, o Patriarca se deteve no mesmo local para oferecer as suas preces sobre o altar já edificado (Gn 12,8; 13,4). Também Jacó marcou o lugar onde o Senhor a ele se mostrara, no alto da escada misteriosa, colocando uma pedra ungida com óleo. (Ib. 28,13-18). Agar, em sinal de veneração, deu nome ao lugar ande o anjo lhe aparecera, e com grande estimação por esse mesmo lugar disse: “Eu vi aqui as castas daquele que me vê a mim” (Gn 16,13).
5. A terceira espécie refere-se a alguns lugares particulares que o Senhor designou para ali ser invocado e servido. Tais foram o Monte Sinai onde Deus deu a lei a Moisés (Ex 24,12); a montanha indicada a Abraão para imolar o seu filho (Gn 22,2); e também o Monte Horeb onde Deus quis manifestar-se a nosso Pai Elias (1Rs 19,9).
6. A causa por que Deus escolhe estes lugares, de preferência a outras, para aí ser louvado, só ele a conhece. Quanto a nós, é suficiente saber que tudo está ordenado para nosso proveito e para serem ouvidas as nossas preces feitas em qualquer lugar, com sincera fé. No entanto, os santuários especialmente dedicados a seu divino serviço oferecem mais segurança às nossas orações, tendo sido consagradas pela Igreja a esse fim.
CAPÍTULO XLIII
De outros meios de que muitas pessoas se servem para orar
e que consistem em grande variedade de cerimônias.
1. Os gozos inúteis e a propriedade de imperfeição que muitas pessoas têm nas coisas de devoção já mencionadas são ainda um pouco toleráveis, por não haver malícia no seu modo de agir. Mas é insuportável a apego manifestado por algumas almas a respeito de certas maneiras de cerimônias introduzidas por pessoas pouco ilustradas e destituídas de simplicidade na fé. Deixemos agora de lado as práticas que consistem na uso de palavras estranhas ou expressões sem significação, bem como outras coisas profanas que pessoas supersticiosas, de consciência grosseira e suspeita, ordinariamente entremeiam em suas orações. Tudo isto é evidentemente mau e pecaminoso porque, nessas cerimônias, algumas vezes existe pacto oculto com o demônio, provocando a ira de Deus, e não a sua misericórdia; não preciso, portanto, falar aqui sobre isso.
2. Limito-me a tratar de certas cerimônias que, não sendo manifestamente suspeitas, são adotadas em nossos dias por muita gente, com devoção indiscreta. Essas pessoas prestam tanta importância e crédito às minuciosidades que acompanham as suas preces e todos os seus exercícios espirituais, que se o mínimo lhes falta ou sai dos limites daqueles modos e maneiras, logo imaginam tudo perdido, parecendo-lhes que Deus não ouvirá suas orações. A sua confiança, em vez de se apoiar na realidade viva da prece, baseia-se nas cerimônias supérfluas, não sem grande desacato e agravo ao Senhor. Querem, por exemplo, a missa celebrada com certo número de velas, nem mais nem menos; oferecida por este ou aquele sacerdote, em determinado dia, a tal ou tal hora, nem antes nem depois. Tratando-se de outro ato religioso, deve-se executá-lo em época precisa, juntar-lhe tal número de orações, realizá-las de certo modo, com cerimônias determinadas, nada podendo ser mudado. Ainda é necessário que a pessoa indicada para esse mister goze de certas prerrogativas ou determinadas qualidades; se, por acaso, vem a faltar uma única circunstância no que está previamente marcado, nada se faz.
3. Mas o pior e intolerável é a pretensão dessas pessoas, querendo sentir os efeitos das orações feitas com aquelas cerimônias, ou desejando saber se alcançarão os fins nelas colimados. Proceder deste modo não é menos do que tentar a Deus e injuriá-lo gravemente; e o Senhor, sendo tão ofendido, permite algumas vezes ao demônio enganar essas almas, por meio de sentimentos a apreensões muito alheias ao proveito espiritual. Elas bem merecem que assim lhes suceda, por causa da propriedade e apego às suas orações, desejando que se faça a sua própria vontade, de preferência ao beneplácito divino. E assim, porque não querem pôr toda a sua confiança em Deus, jamais tirarão proveito com as suas cerimônias.
CAPÍTULO XLIV
Como se deve dirigir para Deus o gozo e a
fortaleza da vontade nesses exercícios de devoção.
1. Quanto mais as almas confiam nessas vãs cerimônias, tanto menos confiança põem em Deus, e não alcançarão dele o que desejam. Há alguns que oram mais pelas suas pretensões pessoais do que para honrar a Deus; e, embora persuadidos de estar a realização de suas petições sempre subordinada à vontade divina, o espírito de propriedade e o gozo vão que os animam levam-nos a multiplicar as preces para obter o efeito dos pedidos. Fariam melhor dando outro fim às suas súplicas, ocupando-se em coisas mais importantes como em purificar deveras a consciência, e ocupar-se, de fato, no negócio de sua salvação eterna. Todas as outras diligências, fora destas, devem ser relegadas a segundo plano. Obtendo de Deus o que é mais essencial, obtém-se igualmente todo o resto, desde que seja para o maior bem da alma, mais depressa e de modo muito melhor do que se fosse empregada toda a força para alcançar essas graças. Assim prometeu o Senhor dizendo pelo Evangelista: “Buscai, pois, primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas se vos acrescentarão” (Mt 6,33).
2. Esta é aos olhos divinos a prece mais perfeita; e para satisfazer as petições íntimas do coração, não há melhor meio do que pôr a força de nossas orações naquilo que mais agrada a Deus. Então, não somente o Senhor nos dará que lhe pedimos, isto é, as graças necessárias à nossa salvação, mas ainda nos concederá os bens que julgar mais convenientes e melhores às nossas almas, ainda mesmo quando não lhos peçamos. Davi no-lo faz compreender em um salmo: “Perto está o Senhor de todos os que o invocam; de todos os que o invocam em verdade” (Sl 144,18). Ora, os que o invocam em verdade são precisamente esses que pedem os dons mais elevados ou, em outras palavras, as graças da salvação. Referindo-se a estas, a mesma Davi acrescenta: “Ele cumprirá a vontade dos que o temem, e atenderá à sua oração, e salvá-los-á. O Senhor guardará a todos os que o amam” (Sl 144,19-20). Esta expressão – Perto está o Senhor – significa a sua disposição em ouvir as súplicas e satisfazer naquilo mesmo que nem pensaram em pedir. Lemos a respeito de Salomão, que tendo solicitado uma graça muito do agrado do Senhor, isto é, a sabedoria para governar seu povo seguindo as leis da eqüidade, ouviu esta resposta: “Pois que a sabedoria agradou mais ao teu coração, e não me pediste riquezas, nem bens, nem glória, nem a morte dos teus inimigos, e nem ainda muitos dias de vida, pois me pediste sabedoria e ciência, para poderes governar a meu povo, sobre o qual eu te constituí rei, a sabedoria e a ciência te são dadas e, além disso, dar-te-ei riquezas e bens e glória, de modo que nenhum rei, nem antes de ti, nem depois de ti, te seja semelhante” (2Cr 1,11-12). Deus, fiel à sua promessa, fez com que os inimigos de Salomão lhe pagassem tributo, e todos os povos vizinhas vivessem em paz com ele. Semelhante fato lemos no Gênesis: Abraão pedira a Deus para multiplicar a posteridade de Isaac, seu legítimo filho. Essa prece foi ouvida pelo Senhor, que prometeu realizá-la, dando a Isaac uma geração tão numerosa quanto as estrelas do firmamento. E acrescentou: “E quanto ao filho da tua escrava, eu o farei também pai de um grande povo, por ser teu sangue” (Gn 21,13).
3. Deste modo, pois, as almas devem dirigir para Deus as forças e o gozo da vontade nas suas orações, não se apoiando em invenções de cerimônias que a Igreja católica desaprova e das quais não usa. Deixem o sacerdote celebrar a santa missa do modo e maneira conveniente, segundo a liturgia determinada pela Igreja. Não queiram usar de novidades, como se tivessem mais luz do que o Espírito Santo e a sua Igreja. Se não são atendidas por Deus numa forma simples de oração, creiam que muito menos as ouvirá o Senhor por meio de todas as suas múltiplas invenções. De tal modo é a condição de Deus, que, se a sabem levar bem e a seu modo, alcançarão dele quanto quiserem; mas se as almas o invocam por interesse, de nada adianta falar-lhe.
4. Quanto às outras cerimônias de várias orações e devoções ou práticas de piedade, não se deve aplicar a vontade em modos e ritos diferentes das ensinadas por Cristo. Quando os discípulos suplicaram ao Senhor que lhes ensinasse a rezar, ele que tão perfeitamente conhecia a vontade do Pai eterno sem a menor dúvida, lhes indicou todo o necessário para o mesmo Pai nos ouvir. Para isto contentou-se em ensinar-lhes as sete petições do Pater Noster, onde estão incluídas todas as nossas necessidades espirituais e temporais. Não acrescentou a essa instrução outras fórmulas ou cerimônias; longe disso, em outra circunstância, ensinou-lhes o seguinte: “Quando orassem, não fizessem questão de muitas palavras, porque o Pai celeste bem sabia tudo quanto convinha a seus filhos” (Mt 6,7-8). Só lhes recomendou, com insistência, que perseverassem na oração, isto é, nessa mesma oração do Pater Noster. E noutra passagem, diz: “É precisa orar sempre, e não cessar de o fazer” (Lc 18,1). Mas não ensinou grande variedade de petições, senão que repetissem muitas vezes com fervor e cuidada aquelas da oração dominical que encerram tudo o que é a vontade de Deus, e conseqüentemente tudo o que nos convém. Quando, no horto de Getsêmani, Nosso Senhor recorreu por três vezes ao Pai eterno, repetiu de cada vez as mesmas palavras, como referem os evangelistas: “Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não se faça nisto a minha vontade, mas sim a tua” (Mt 26,39). Quanto às cerimônias que nos ensinou para a oração, são apenas de dois modos: seja no segredo de nosso aposento, onde, afastados do tumulto e de qualquer olhar humano, podemos orar com o coração mais puro e desprendido, conforme aquelas palavras do Evangelho: “Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechada a porta, ora a teu Pai ocultamente” (Mt 6,6), retirando-nos a orar nos desertos solitários, como ele próprio fazia nas horas melhores e mais silenciosas da noite. Desta forma, não será preciso assinalar tempo limitado às nossas orações, nem dias marcados, preferindo uns aos outros, para nossos exercícios devotos; não haverá também razão para usar de modos singulares expressões estranhas, em nossas preces. Sigamos em tudo a orientação da Igreja, conformando-nos ao que ela usa; porque todas as orações se resumem nas mencionadas petições do Pater Noster.
5. Não quero condenar algumas pessoas que escolhem certos dias para as suas devoções, ou para jejuar e fazer outras coisas semelhantes; pelo contrário, antes aprovo essas práticas devotas. Merece repreensão somente o modo e as cerimônias com que as fazem, pondo limites e formalidades nessas devoções. Foi isto que reprovou Judite aos habitantes de Betúlia, quando os censurou por terem fixado a Deus o tempo em que esperavam receber o efeito da sua misericórdia; e assim lhes disse: “E quem sois vós para limitar o tempo da misericórdia de Deus? Não é esse o meio de atrair a sua misericórdia, mas, antes, de excitar a sua cólera” (Jt 8,11-12).
CAPÍTULO XLV
Trata do segundo gênero de bens espirituais distintos
em que a vontade pode comprazer-se vãmente.
1. Há uma segunda espécie de bens distintos agradáveis, nos quais a vontade pode achar gozo inútil. São os que provocam ou persuadem a servir o Senhor, e por isso os chamamos provocativos: referimo-nos aos pregadores. Podemos considerá-los sob duplo aspecto; isto é, no que diz respeito aos mesmos pregadores, e no que se relaciona com os ouvintes. A uns e outros há muito que advertir indicando-lhes o modo de orientar para Deus o gozo da vontade nos sermões.
2. Em primeiro lugar, se o pregador quer ser útil ao povo e não se expor ao perigo de vaidosa complacência em si mesmo, é bom lembrar-lhe que a pregação é um exercício mais espiritual que vocal. Sem nenhuma dúvida, a palavra exterior é o meio indispensável; todavia, a sua força e eficácia dependem inteiramente do espírito interior. Por sublime que seja a retórica e a doutrina daquele que prega, por elevado que seja o estilo com o qual apresenta os seus pensamentos, o fruto será proporcional, ordinariamente, ao espírito que o anima. Embora a palavra de Deus seja em si mesma eficaz, e Davi pôde dizer que “o Senhor emite sua voz, voz poderosa” (Sl 67,34), todavia, o fogo também tem a virtude de queimar e, no entanto, não inflama um objeto ao qual falte a disposição necessária.
3. Ora, para assegurar os frutos da doutrina, ou da palavra de Deus, duas disposições são requeridas: uma no pregador e outra no ouvinte. Habitualmente, o resultado do sermão depende da disposição do que prega. Diz-se com razão: tal mestre, tal discípulo. Lemos nos Atos dos Apóstolos que os sete filhos daquele príncipe dos sacerdotes dos judeus tinham o costume de esconjurar os demônios com a mesma fórmula de que se ser-via S. Paulo; um desses malignos espíritos se pôs em furor contra eles e gritou-lhes: “Eu conheço a Jesus, e sei quem é Paulo, mas vós quem sois?” e apoderando-se deles, arrancou-lhes as roupas e os deixou feridos (At 19,15). Assim aconteceu porque esses homens não possuíam as disposições necessárias para semelhante missão, e não porque Cristo proibisse que os demônios fossem expulsos em seu nome. Uma vez, os apóstolos, vendo um homem, que não pertencia ao número dos discípulos, expulsar o demônio em nome de Cristo, quiseram opor-se a ele; logo o Senhor os repreendeu, dizendo: “Não o estorveis, porque não existe ninguém que, tendo em meu nome feito um milagre, possa no mesmo instante se pôr a falar mal de mim” (Me 9,38). Deus tem ojeriza dos que, ensinando a sua lei, não a guardam, e pregando o bem, não o praticam. A esse respeito, S. Paulo exclama: “Tu, pois, que a outro ensinas, não te ensinas a ti mesmo? Tu que pregas que se não deve furtar, furtas?” (Rm 2,21). E o Espírito Santo, pela voz de Davi, diz ao pecador: “Por que falas tu dos meus mandamentos e tomas o meu testamento na tua boca? Posto que tu tens aborrecido a disciplina e postergaste as minhas palavras” (Sl 49,16-17). Faz-nos compreender, por aí, que o Senhor recusará a tais homens o espírito necessário para produzir fruto nas almas.
4. Ordinariamente estamos vendo: quanto mais a vida do pregador é santa e perfeita, mais a sua palavra é fecunda, produzindo maior fruto nos ouvintes, mesmo sendo vulgar o seu estilo, diminuta a sua retórica e comum a sua doutrina, porque do espírito vivo se lhe comunica o calor. E o outro, de vida imperfeita, pouco proveito fará nas almas, não obstante a sublimidade do estilo e a elevação da doutrina. Certamente o bom estilo e modo de pregar, a doutrina elevada, são de natureza a impressionar os ouvintes, produzindo ótimos resultados, quando tudo isto vem acompanhado de bom espírito; mas, sem esse espírito interior, embora possam ter certo gozo, e a inteligência ficar satisfeita, a vontade receberá pouco ou mesmo nada desses sermões. E assim costuma permanecer frouxa e remissa para agir, como estava antes, apesar das mais belas palavras maravilhosamente ditas pelo orador. Não servem essas frases senão para encantar os ouvidos, como um concerto musical ou o som harmonioso dos sinos. Mas o espírito, como digo, não sai dos seus limites mais do que antes, porque não tem a voz do pregador virtude para ressuscitar o morto tirando-o de sua sepultura.
5. Pouco importa ouvir uma música soar melhor que outra, se me não move mais que a primeira a praticar obras. Porque embora tenham dito maravilhas, logo se esquecem, pois não pegarão fogo à vontade. Porque além de não produzirem de si mesmo muito fruto, aquela presa que o sentido faz no gosto da tal doutrina, impede que passe ao espírito, ficando-se só na estima do modo e dos acidentes com que é dita, louvando o pregador nisto e naquilo, e seguindo-o por esse motivo mais do que pela emenda que daí se tira. S. Paulo dá muito bem a entender esta doutrina aos coríntios, dizendo: “Eu, irmãos, quando vim ter convosco, não vim pregando a Cristo, com sublimidade de doutrina e de sabedoria; e as minhas palavras e a minha pregação não eram em retórica de humana sabedoria, mas na manifestação do espírito e da verdade” (1Cor 2,1-4).
6. Porque embora a intenção do Apóstolo e a minha não seja condenar o bom estilo e a retórica e o bom termo, pois muito importam ao pregador, como, aliás, a todos os negócios; porque o bom termo e estilo, até as coisas caídas e estragadas levanta e reedifica, assim como o mau termo às boas estraga e perde…
(São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo, L. III, c. XXXV – XLV)